quarta-feira, 9 de março de 2011

As obras completas

Ao passar junto a um contentor de lixo vi um sem-abrigo agachado e debruçado com a cabeça enfiada em dois sacos de plástico. São livros, disse de mim para mim. Aproximei-me com o jornal do dia na mão e deixei-me ficar durante cerca de dez minutos a observar a azáfama do homem velho e barbudo de volta dos dois sacos. Tentando não dar nas vistas observei os seus movimentos depois de ter a certeza que as suas costas não tinham olhos nem ele queria que tivessem. Eram dois sacos cheios de livros antigos que ele ia vendo um a um mostrando-me ao mesmo tempo as capas e os critérios da sua escolha.
Dez minutos é muito tempo para quem está no meio de uma rua a observar e a ser observado. Quando vi três ou quatro títulos que me interessavam no monte que julguei ser o da sua escolha tomei a decisão de abortar o trabalho dele e pensei: ofereço-lhe uma nota de vinte euros e tomo o seu lugar. Fiz uma tentativa para ele reparar em mim e não resultou. O homem não era um leitor esclarecido e muito menos alguém habituado a negociar com alfarrabistas. De certo que não vai aceitar o meu dinheiro e perco a oportunidade de ficar com os seus restos que, com alguma sorte, serão melhores do que as suas escolhas, pensei melhor. Bem o pensei e mais depressa o fiz. Afastei-me do contentor e fui ao meu destino que era uma farmácia do outro lado da rua. Com um olho no burro e outro no cigano só tive que esperar cerca de mais dez minutos para tomar o seu lugar. Nos sacos já meio vazios estavam ainda muitos dos livros que eu tinha cobiçado nas suas mãos nomeadamente livros de poesia e ensaio. Acabei por levar para o carro oito títulos e ainda lá deixei  cerca de duas dezenas. Mais importante que os livros que lá ficaram, foi a vergonha que eu lá deixei quando, sob o olhar atento de alguns transeuntes, tomei o lugar do sem-abrigo. Sei quantas pessoas me olharam e quantas sorriram nas minhas costas mas não desisti de levar debaixo do braço, melhor dizendo, no colo, os livros que alguém despejou em dois sacos junto a um contentor do lixo.

Na semana passada andava no campo a abrir covas para plantar árvores de fruto. Depois do trabalho feito (abrir as covas e enfiar lá dentro uma forquilha de esterco)  fui arranjar a terra de volta das árvores plantadas o ano passado por esta altura. Havia por lá uma meia dúzia de árvores que pareciam mortas. Há muito tempo que percebia que estavam mortas mas faltava-me ter a certeza e reconhecer o fracasso (o meu, que as plantei, e o da terra que não foi capaz de as fazer vingar). Telefonei a um amigo que vive da agricultura e no meio de uma conversa que tinha servido de pretexto para o telefonema perguntei-lhe como resolvia o meu problema. Ó Joaquim, com uma navalha faz um pequeno corte na árvore; se estiver verde é porque está viva; se estiver cinzenta então a árvore está morta, explicou, assim sem mais palavras.
Tão fácil não é? E acabei eu de ler a Obra Completa do Carlos de Oliveira e não sabia esta coisa tão simples de usar uma navalha que não seja só para cortar o pão.

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