quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Estamos sempre a pisar o mesmo chão

Qualquer erva daninha pode ser ponto de partida para falarmos de grandes e variadas plantações, assim como uma viagem pode ser razão para falarmos da infância, de livros e de promessas de amor eterno.


Quando era menino o meu lugar de brincadeira era na chamada Rua da Formiga, que pegava com a Travessa do Porto do Carvão, na Chamusca, onde a minha avó Ilda morava.  Foi na sua casa que aprendi quase tudo até uma certa idade. Foi ela que me guiou bem cedo na vida e desenhou na terra os carreiros que eu devia seguir para chegar à estrada, e da estrada à porta da minha futura casa.

Com dois ou três amigos de infância, de vez em quando saíamos da Rua da Formiga para o Porto das Mulheres, e daí andava mais meio milhar de metros para dentro do campo, junto à maracha, para lá da barraca do Joaquim Rato, que era guarda do campo.

Todas as propriedades tinham mais ou menos os mesmos marcos de hoje, com a diferença de que eram todas divididas por sebes; a cada 30 metros que avançávamos no terreno parecia que deixávamos para trás três quilómetros de estrada. Estas caminhadas e esses medos, sentidos e vividos por terras do campo, eram menos perigosos que, por exemplo, tomar banho no rio, subir os choupos só para fazer músculo, andar de jangada nas alturas de cheia e, muitas vezes, roubar laranjas para comer porque os donos das propriedades não eram de modas.

 Hoje tenho de empréstimo uns metros quadrados de terra junto ao Tejo que incluem, se bem me lembro, o terreno onde o Joaquim Rato vivia. Já fiz aquele caminho milhares de vezes nos últimos vinte anos, e nunca paro de me perguntar do que é que eu tinha medo nessa altura. Sinto que é ali que vou acabar os meus dias (ou parte deles, porque eu tenho sangue de índio), desafiando os deuses a devolverem-me em dobro o prazer de entrar nas águas do rio, voltar a dormir no chão e continuar a explorar a maracha onde se escondem as cobras mas também os jovens amantes.


Estou a escrever, viajando com livros debaixo do braço, do outro lado do Atlântico, onde faz ainda mais sentido todas estas recordações e promessas de amor eterno aos lugares da infância. Mas há outros lugares no mundo tão parecidos com aqueles que recordamos, que é tão fácil mudar de lugar e aquietar o espírito como mudar de camisa quando a roupa fica com cheiro de suor. É isso que sinto neste momento. A nossa terra, assim como a nossa família, vai connosco para o fim do mundo, e só depende de nós fazer com que terra e família sejam sempre a parte mais importante na hora de desafiar os medos. Curiosamente vou a caminho de um lugar onde tudo é mar e floresta, e onde também há maracha, rios e cobras, e vive uma escritora que escreveu no livro que viaja debaixo do meu braço, que “a mentira almoça mas não janta”, “uma palavra que não pode ser dita não é completa”, “a vida de um cego não é a escuridão que as pessoas imaginam”, e que é “mais difícil ressuscitar um morto que tolo curar de sua tolice”. A autora chama-se Ana Miranda, o livro Amrik, e o encontro está prometido perto da sua chácara, debaixo de um bacumixá, onde o padre Simeão, do seu livro Semíramis, avisa que “o ressentimento é um veneno que você toma e fica esperando o outro morrer”. JAE.

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