segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Lula vai ganhar

 O Brasil está a ferro e fogo até domingo, dia de escolher entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro para presidente. Esta é a crónica de quem acompanhou a campanha eleitoral nestas últimas semanas, em lugares diferentes do Brasil, numa posição privilegiada que não a de jornalista a trabalhar mas de jornalista a viajar.


“Lula vai ganhar. Escreve uma crónica. Lula vai ganhar. O Brasil não pode perder esta oportunidade”. Eis a conversa que melhor espelha a minha estadia no nordeste do Brasil nos últimos dias de campanha para as presidenciais brasileiras que se decidem no próximo domingo. Mais de 156 milhões de eleitores aptos a votar vão retornar às urnas eletrônicas para escolher entre os candidatos Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL), quem deverá ser o presidente da República nos próximos quatro anos.


Em Peroba, Três Picos e Redonda, lugares da região cearense de Icapuí, que não fazem parte do mapa turístico da elite que viaja para o Brasil, passei os últimos dias a ver como Lula da Silva domina no meio do eleitorado nordestino. Em cinco dias que viajei por estes lugares não vi um único carro com a bandeira ou a foto de Bolsonaro. Aqui só dá Lula. A ansiedade que já tinha observado no povo paulista que encontrei há quase duas semanas em Paraty, no meio do povo caiçara, não é diferente daquela que vim encontrar a cinco dias das eleições no meio do povo cearense, na região que quase faz fronteira com o Rio Grande do Norte.


Hoje almocei em casa de uma das maiores figuras da literatura brasileira que trocou o Rio do Janeiro, e depois Fortaleza, por Icapuí, e aqui construiu a sua casa e um pequeno chalé para os amigos. Há dias que percorro a região à procura de peixe frito para o almoço que não seja cavala. A região litoral tem muita lagosta mas a verdade é que até o mar em tempo de campanha eleitoral parece um abrigo seguro para o peixe que não cai nas redes, aparentemente só até domingo quando se souber se Lula da Silva perde ou ganha contra Bolsonaro, o homem que, dizem, pode levar o Brasil para os tempos da idade média.


O ambiente que vim encontrar em Peroba não é diferente daquele que encontrei no Rio de Janeiro no início da passada semana depois do regresso de Parati. Dos dois lados da barricada só se diz: “como é que nós vamos suportar esta ansiedade até ao dia das eleições? O Brasil não pode perder esta oportunidade”, diz-se no Boteco da Xavier da Silveira, em Copacabana, mas também na livraria da Travessa, no Leblon.


Na Barraca do Pôr do Sol, da Juju, em Redonda, ou no restaurante do Senhor Nilson, em Três Picos, ou na Pousada Estrelinha, em Peroba, a coisa pia mais fino. O melhor exemplo nem é o autocolante de Lula nas mangas da camisa da maioria dos cearenses; é a camiseta de Che Guevara no tronco dos homens mais jovens que não fazem a coisa por menos: esta luta é a do guerrilheiro contra todo o capitalismo, pode-se concluir, embora a figura de Che nas camisetas pareça mais a imagem de Humphrey Bogart.


Ao longo destas últimas três semanas nunca ouvi uma discussão política entre cidadãos que passasse das marcas. O povo, aquele que tem a ganhar com o resultado destas eleições, vença quem vencer, está espelhado na conversa com Joãozinho, um pescador de Peroba, que vi partir para o meio do mar num fim de tarde, em cima de uma jangada com dois metros, e uma vela azul da cor da água do mar quente do ceará.


Vi carregar a jangada de redes e de mil apetrechos para a pesca, e não consegui perceber como é que uma criatura com 60 anos, o corpo dobrado, as mãos e os pés cheios das marcas do trabalho, se faz assim ao mar em cima de uma tábua, para ficar por lá 24 horas, sem tamanho para ser visto por Deus que vigia tudo por cima das nuvens. Aquela entrada no mar em cima da jangada velha, como um atleta de vela de alta competição, e o tempo que fiquei a vê-lo desaparecer no horizonte, é uma imagem que nunca mais vou esquecer, mesmo que Lula perca as eleições e o povo do nordeste brasileiro tenha que continuar a viver no país mais rico do mundo sujeito a uma pobreza que comove, revolta, e tem um culpado bem identificado que é a divisão de classes, e o atraso civilizacional que atravessa todo este território, que pode ser considerado um continente, que os portugueses descobriram e ajudaram a colonizar, mas do qual não são responsáveis há mais de duzentos anos. Laurentino Gomes, o historiador da moda no Brasil, que tem vendido milhões de livros a explicar a colonização, é bem claro quando escreve que foram os portugueses que não permitiram que o território brasileiro fosse hoje um conjunto de países, e sim uma grande nação com regiões diferentes, mas unidas em volta de uma bandeira. O mesmo espírito podemos encontrar nos romances históricos de Ana Miranda, a maior e a melhor romancista brasileira da actualidade, certamente a escritora brasileira que melhor retrata Portugal e os portugueses no Brasil antes da independência, em romances como “O Retrato do Rei” mas também em biografias como “Musa Praguejadora”, que conta a vida de Boca do Inferno, como ficou conhecido o poeta baiano Gregório de Matos, e que é também titulo de um livro que fez da escritora cearense, há mais de trinta anos, a mais destacada entre os seus pares.


No dia das eleições vou estar no olho do furacão como se diz por aqui. Certamente longe do tumulto que vai acontecer nas ruas do Rio de Janeiro ou de S. Paulo. Já sei até onde vou assistir a tudo, a exemplo de quando viajo para o Brasil e dou com manifestações carnavalescas; dentro de um hotel, à varanda, entre a piscina e a espreguiçadeira, lendo um livro e escrevendo à família.


JAE

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