quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Mensagens de ódio contra a comunicação social são um perigo para a democracia

Há uma campanha de mensagens de ódio contra os meios de comunicação social que não são espontâneas. A normalização de estados de ódio é o perigo mais patente para uma democracia, revela estudo publicado na vizinha Espanha que, como é evidente, tem reflexos que atingem todos os países onde há democracia.  


Na passada semana fiz-me caro ao receber um telefonema em Madrid, onde fui comprar dois livros e visitar duas exposições, na véspera do fecho da edição de O MIRANTE. Lembrei-me que não tinha a crónica escrita e desabafei com o editor que não me apetecia nada apurar o caldo dos textos que tenho sempre, mais ou menos, preparados e adiantados. Recebi como resposta: deixe estar; o jornal vai ficar com muito texto de fora e assim aproveitamos a última página para publicar notícias. E assim foi. Desliguei do assunto e engoli a desfeita. Um dia destes vou ouvir dizer, já com os olhos semicerrados, que o cemitério está cheio de pessoas insubstituíveis. É bom ter quem nos vá abrindo os olhos antes de os fecharmos definitivamente.

O MIRANTE publica nesta edição a segunda parte de uma entrevista com o jornalista do DN João Céu e Silva. Há razões para conversar com ele que vão da sua experiência como jornalista até à sua carreira como biógrafo e romancista. Dou nota da entrevista para lembrar que nesta altura o DN tem cerca de dúzia e meia de jornalistas, o que diz bem do estado a que chegou o jornal centenário de referência em Portugal que resistiu ao passar do tempo. O pretexto para falar deste caso é também a insolvência da empresa dona da revista Visão e Exame, as propostas de rescisão amigável no jornal Público, e a forma como o falso jornalismo televisivo está a querer ajudar a acabar com a profissão mais bela do mundo. À excepção do Correio da Manhã e do Expresso, o panorama do jornalismo português ao nível dos grandes meios está pelas ruas da amargura. Como a profissão está em decadência, não há novas fornadas de jornalistas que daqui a uma década, no mínimo, ocupem o lugar daqueles que ainda fazem o trabalho de casa, embora cumprindo apenas o mínimo dos mínimos. A distribuição está definitivamente nas mãos de uma só empresa, as gráficas para lá caminham e as tiragens começam a ser insignificantes, o que, lamentavelmente, vão levar à falência da maioria dos títulos que ainda resistem (O MIRANTE, por exemplo, já é impresso em Espanha há mais de um ano por falta de soluções em Portugal). Ao contrário do que se esperava, a imprensa local e regional vai pelo mesmo caminho, por mais estranho que pareça.

Um estudo, que também chega de Espanha, que em termos de imprensa escrita é das mais fortes do mundo, prova que há uma campanha de mensagens de ódio contra os meios de comunicação social que não são espontâneas.  A conclusão surge na sequência de uma investigação que analisou mais de nove milhões de mensagens nas redes sociais. O trabalho, dirigido por investigadores da Universidade Internacional de La Rioja (UNIR) e com a participação de académicos de outros sete centros, descobriu padrões de escrita, horários e dias em que as mensagens de ódio são recebidas nos meios tradicionais na Internet, tanto na rede X e Facebook, como nas suas próprias páginas. O resultado do estudo é uma descrição da situação que enfrentam os media espanhóis desde há uns anos. Nas plataformas analisadas, as mensagens são maioritariamente de ódio e uma grande parte são mensagens de desprezo, insultos e ameaças. O estudo converteu-se, este ano, num monitor permanente que analisa, dia a dia, o ódio contra os meios de comunicação tradicionais. A monitorização classifica o ódio por intensidade e categoria. Isso permite ver se, num determinado momento há mais ataques contra mulheres, imigrantes, minorias sexuais, políticos, etc. Também analisa a intensidade porque as mensagens com ameaças podem ter consequências legais e os investigadores descobriram que milhões de mensagens menos importantes acabam por criar um problema para as sociedades, porque permitem incorporar o ódio na cultura. "A normalização de estados de ódio é o perigo mais patente para uma democracia”, refere o investigador. JAE.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

O trabalho, dançar em Paris, Milan Kundera e à memória de José Manuel Roque

A reabertura da catedral de Notre Dame, o trabalho de jornalista, a morte que existe para alimentar a eternidade, e outras palavras roubadas ao quotidiano dos últimos dias.

Já vou em quatro horas de trabalho a montar uma entrevista quando recebo no telemóvel fotos de uma neta, com meses de vida, a chorar no momento em que prova a sua primeira comida sólida, uma sopa que, pela aparência, deve estar muito boa, mas para ela deve saber a amêndoa amarga, uma vez que até agora só conhecia o sabor do leite da mãe.

A meio da manhã recebo a notícia da morte do empresário e amigo José Manuel Roque, cujo internamento no Hospital tenho vindo a acompanhar; nos últimos dias o seu coração batia como o de um passarinho, diziam os médicos da unidade hospitalar onde estava internado. A última vez que estivemos juntos, se bem me lembro, foi no Tribunal de Santarém, onde foi minha/nossa testemunha abonatória, num caso que envolveu um personagem manhoso. Ficamos a dever-lhe esse favor que, agora, só lhe poderei  pagar na eternidade.  

Antes de me mandar à entrevista como um leão, velho e um pouco cansado da jornada, mas ainda com as garras afiadas, andei a navegar nos vários endereços de email onde tenho guardado dezenas de currículos para ajudar a equipa a escolher novos colaboradores.

Ainda trabalho textos de entrevistas de vida, mas recuso-me a fazer entrevistas de emprego. Chega. Não quero pensar no tempo em que comi a primeira sopa, mas também não quero chegar à idade do empresário José Manuel Roque e ainda andar à pesca, sabendo que o que vem à rede é peixe mas nem todo é de confiança.

Vou à cozinha de hora a hora beber café das velhas e mordiscar qualquer coisa. A televisão é toda catedral de Notre Dame, que, neste dia, volta a abrir ao público depois do grande incêndio que comoveu o mundo. Vou lá todos os anos, mas é muito raro entrar na Catedral; o meu destino é um lugar a 100 metros do monumento onde se dança numa cave com música ao vivo e se fala em várias línguas. O espaço é pequeno, mas é único, como uma catedral. Lá dentro só sobrevive quem dança, quem vai para transpirar e conhecer gente que, tal como eu, está de passagem pela cidade e não gosta de abanar o capacete, mas de música de jazz ou dos anos sessenta. A primeira visita à Catedral foi há muitos anos, e serviu na altura para ficar por lá cerca de cinco minutos a ouvir o silêncio, que depois fica na memória durante o resto do ano, até voltarmos aos lugares onde somos felizes. Antes e depois do incêndio voltei a dormir lá por perto num daqueles pequenos hotéis que servem às mil maravilhas só para descansar um fim-de-semana.

Pela primeira vez o texto da entrevista que estou a montar saiu do gravador directamente para o computador em letra de forma graças à ajuda da IA e do Fábio Oliveira. Amanhã vou levar a novidade a toda a equipa. Veremos quem, depois desta descoberta, vai continuar a achar que não pode confiar nas tecnologias. Mesmo assim vou chorando por não poder gozar a luz do dia de sábado, agora que já são quase seis da tarde, e só trabalhei, e comi, e falei ao telefone sobre trabalho.

À noite fui a Corroios jantar a uma colectividade a convite de um amigo, mas com um pavilhão dominado por japoneses que ofereceram a comida. A vida nas colectividades é igual em todo o lado, só muda nas terras que perdem habitantes, têm as casas a cair, não há cidadania activa, estão entregues a dirigentes políticos analfabetos.  

Quando cheguei a casa vi um documentário sobre Milan Kundera, um dos meus escritores preferidos. Ultimamente tenho andado a aproveitar todos os minutos para reler a sua Obra, e em alguns casos ler pela primeira vez alguns dos seus títulos. O documentário também é para voltar a ver. Às quatro da manhã vou para a cama, mas continuo a ler "A Arte do Romance", onde o realizador do documentário foi buscar muitas frases que alimentam o filme sobre a sua vida e o seu pensamento. Não tenho sono, e acho um desperdício dormir com "A Valsa do Adeus", "A Brincadeira" e os dois volumes de "A Insustentável Leveza do Ser", à espera em cima da cómoda, embora com as marcas do tempo. Foi por causa da adaptação para cinema deste romance que o autor se zangou com o mundo, deixou de dar entrevistas e prometeu que mais nenhum dos seus romances serviriam outros interesses que não a leitura. No entanto, foi o filme que lhe deu projecção mundial, que fez com que o seu nome seja hoje muito mais popular, embora a Obra magnífica. “O artista deve fazer crer à posteridade que não viveu”. A vida privada de um homem e o seu rosto não pertencem ao público”. “Do esboço à Obra o caminho faz-se de joelhos”. “São precisas várias vidas para fazer uma só pessoa”. “O quarteto op. 131 ( de Beethoven) é o máximo da perfeição arquitectónica”. E, se bem me lembro, nessa noite de sábado sonhei pela primeira vez que dormi dentro das páginas de um livro, muitos anos depois de ter alimentado a ilusão que um dia podia encontrar Milan Kundera a passear em Paris, à beira do rio Sena, folheando livros e perguntando o preço das gravuras antigas. JAE.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Ministra da Cultura esteve em Santarém mas não teve que prestar contas

A ministra da cultura Dalila Rodrigues esteve em Santarém a acompanhar o primeiro-ministro Luís Montenegro mas chegou tão cedo que se passeou entre convidados como um escalabitano em dia de festa. Os jornalistas e os que fingem ser jornalistas ficaram todos nas covas; ninguém lhe perguntou que novidades é que ela tem para a capital do gótico.

Viver num meio pequeno parece uma desvantagem para quem nasceu numa grande cidade, mas para mim é um engano que sai caro. Sei do que falo porque tive a sorte, e ainda tenho, de viver os dois mundos nos últimos trinta anos depois de comprar casa numa grande cidade antes de me mudar para lá, embora nunca definitivamente. Uma das razões para gostar de viver num meio pequeno é conhecer-me melhor, sabendo que sou permanentemente observado e julgado. E nos meios pequenos as pessoas são tão afectuosas como podem ser cruéis; dificilmente existe o meio termo. Se uma pessoa vinga na vida e com isso a comunidade também ganha, por que ele sabe distribuir o que tem, seja em bens materiais ou simpatia e carinho, não há quem não o trate por primo, vizinho, amigo, entre outros mimos que a linguagem permite. Se a pessoa tem um azar e não vinga, faz má figura nos negócios ou tem uma família complicada, todos lhe chamam nomes feios ou dizem em jeito de desdém que deu o passo maior que a perna.

Conheço este desafio desde os meus catorze anos quando comecei a desenhar a minha vida futura no caminho que fazia sozinho da vila para casa, já noite alta, depois de ver televisão ou jogar bilhar na colectividade da terra. E já nessa altura ao ditado “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”, eu acrescentava o ditado: “sabendo do que te ocupas, saberei para onde vais”.

No dia em que reabriu a igreja de São João de Alporão, em Santarém, fui até ao local ver a festa mas não me misturei. Embora o espaço em frente da igreja seja pequeno, chegou para passar despercebido, encostado a uma parede. Pude assim observar sem ser observado até me fazer ao caminho de volta à sede do jornal. Mas só saí depois da cerimónia já ir a meio dentro da igreja, que encheu até às costuras, o que me deu a possibilidade de também reparar no que mais me interessava na paisagem humana. 

Enquanto fiz o meu papel de jornalista de folga, fui desafiado por um cidadão a dar uma volta ao edifício para o ouvir dizer que o beirado da igreja mostrava que havia várias falhas no telhado, que os milhões gastos na obra não deram para terem mais cuidado no cimento que espalharam nas paredes (que a visão de quem passa na rua não alcança), para além das severas críticas ao facto de não terem colocado os leões de pedra à entrada do monumento, uma vez que são parte da memória do local (vou ficar por aqui porque o homem parecia mesmo um fiscal das obras).

Cheguei ao templo a tempo de ver a Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, a conviver como um à vontade que não é habitual num membro de um governo, e tiro-lho o chapéu porque não a vi ser confrontada com as políticas centralistas dos governos da nação, de que Santarém tem bastantes queixas, e muito menos a ser questionada sobre políticas públicas para a cultura. A anunciada presença e iminente chegada do primeiro-ministro fez da ministra da cultura uma simbólica figura da hierarquia dos poderosos que mandam nisto tudo. Políticas à parte deu para perceber que o novo presidente da câmara de Santarém, João Leite, ganhou estaleca e não deixa mal quem foi substituir. Luís Montenegro deu por isso e do que ouvi, com ouvidos de tísico, já que o som mal chegava cá fora, os caminhos para os gabinetes de Lisboa estão escancarados. Agora é preciso saber aproveitar.

Como é habitual no final do dia fui dormir a Lisboa, mas no dia seguinte já fui dormir à Chamusca, embora de verdade eu esteja noite e dia sempre na região, seguro que nem um barco preso a um salgueiro. Não acabo esta crónica sem contar que me perguntei o que fui fazer à inauguração da nova igreja de São João de Alporão, se a intenção era encostar-me a uma parede. Acho que fui à procura, que é aquilo que eu melhor sei fazer, embora, se eu soubesse onde está o que procuro, não andaria certamente à procura. JAE.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O Processo: um livro sobre Justiça que vai para segunda edição

O MIRANTE vai publicar uma segunda edição do livro O Processo que conta um caso exemplar de como se ataca a liberdade de imprensa em Portugal e como um advogado conseguiu manobrar o sistema judicial com a aparente complacência de alguns actores do sistema.

O MIRANTE vai editar uma segunda edição do livro “O Processo” que conta um caso de perseguição a este jornal com intenção de acabar com ele. O processo foi obra do advogado Oliveira Domingos, que por causa de uma notícia de interesse público, quando quis sacar meio milhão de euros à Câmara de Santarém, sentiu-se ofendido por O MIRANTE ter dado notícia do assunto. Recorde-se que Oliveira Domingos era advogado da câmara dirigida por Rui Barreiro, e que tinha trabalho como avençado e como responsável por outros processos à parte dessa avença, recebendo por isso dividendos chorudos. Foi sobre esses processos que lhe iam ser retirados que pediu quase meio milhão de euros de indemnização, e que depois acabou por receber um pouco menos devido às notícias de O MIRANTE. O jornalista Orlando Raimundo veio para Santarém consultar os milhares de documentos deste processo monstruoso, e contou em livro o que não está muito longe da realidade kafkiana da Justiça em Portugal, meio século depois do 25 de Abril.

O processo demorou sete (7) anos e chegou a somar uma indemnização de quase 30 milhões de euros ao advogado que tinha, e ainda tem, segundo julgo saber, escritório em Santarém.

Oliveira Domingos, que entretanto desapareceu da cidade, também não imaginou no que se ia meter, e pensou que as cumplicidades a nível político e judicial seriam mais que suficientes para destruir O MIRANTE e a vida dos seus jornalistas e restante equipa. Enganou-se redondamente. E a reedição do livro é importante porque, com o tempo, há quem pense que o assunto está esquecido. Não está. Orlando Raimundo actualiza a edição com um texto que diz bem da complexidade e da importância que dedicou a este julgamento.

Este caso de O MIRANTE é único na imprensa portuguesa devido à forma como a Justiça o decidiu em primeira instância e na aceitação de uma providência cautelar inimaginável num Estado de Direito. Ninguém falou dele ou quis contar ou denunciar, mostrando também que a solidariedade entre jornalistas e meios de comunicação social não existe, nem ao nível local quanto mais ao nacional. E a postura do Sindicato dos Jornalistas e das associações de imprensa, são exemplares também a esse nível. Tristes e lamentáveis.

Esperamos ter a oportunidade de publicar nestas páginas, agora que o livro já vai para segunda edição, alguns capítulos que demonstram até que ponto podemos ser esmagados por uma justiça sem profissionais competentes, que se deixam manobrar, ainda que por vezes sem culpa própria por falta de preparação para o que não viveram, não estudaram e não tiveram a coragem e a humildade de se informarem; e, ou, em último caso, acharam que éramos demasiado frágeis como empresa e como profissionais do jornalismo, e que bem podíamos desaparecer debaixo das botas cardadas de um advogado com muitas influências, e de uma Justiça muitas vezes impreparada. JAE.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Foi preciso chegarmos a 2024 para aparecer um governo que quer acabar com a publicidade na RTP

A RTP recebe anualmente 200 milhões de euros do Estado e factura publicidade em concorrência com todas as empresas de comunicação social do país. Não é justo. No mínimo é uma afronta. 


Num dos livros mais belos da literatura do nosso tempo, Sándor Márai conta uma história ao longo de quatro décadas dando voz a quatro narradores. De verdade é um livro fabuloso, daqueles que fazem jus a um texto de Baudelaire, que cito de cor, que diz que a leitura e releitura ao longo da vida de dez grandes livros chegam para fazer um homem culto.

Já perto do final do livro, uma das personagens mais belas e sinistras do romance, conta que “a pobreza para as crianças é diferente do que imaginam os adultos que nunca foram pobres de verdade. Para a criança a pobreza é sempre divertida, e não apenas miséria. Para a criança pobre, a sujeira em que ela se arrasta e se deita é boa. E na pobreza não é preciso lavar as mãos. Para quê? A pobreza é ruim, muito ruim, somente para os adultos... é o pior que tudo, é como a sarna e a cólica do intestino”.

A personagem usurpou o poder de um homem, tomou conta da sua casa rica e da fortuna de uma família, onde toda a vida foi empregada doméstica. Judit, é assim que se chama a personagem, conta num quarto de hotel de Roma a um novo namorado como foi viver a experiência de passar de empregada do patrão a sua esposa. E relembra como em criança era feliz ao chapinhar na lama da vala que passava perto de sua casa, ao mesmo tempo que conta como viviam os ricos, as suas vidas, as suas manias, os seus poderes, as suas incompletudes que, quase sempre, nos romances, mas também na vida real, roçam o ridículo.

Confesso que conheci este livro muitos anos depois de conhecer o professor doutor Alberto Arons de Carvalho, recentemente eleito presidente do Conselho Geral Independente da RTP um órgão de supervisão e fiscalização interna do cumprimento das obrigações de serviço público de rádio e televisão, previstas no contrato de concessão assinado entre a RTP e o Estado.

Arons de Carvalho é o homem forte do PS para a comunicação social, e para ele a idade não conta, o importante é estar vivo e poder continuar a ter uma palavra na gestão do serviço público, seja ele qual for, desde que seja sentado numa cadeira dourada.

Com 75 anos e uma carreira política sempre à tona de água, Arons de Carvalho é um dos coveiros da Imprensa local e regional, não tanto pelo que fez, mas pelo que não fez. E estou a ser curto e grosso para não me alongar. Claro que não é ele o único culpado do fecho de mais de meio milhar de jornais na última década, mas é sim senhor um dos políticos mais responsável do estado a que chegamos, tanto enquanto secretário de Estado com a tutela da comunicação social como em outras funções onde teve poder sobre as políticas para os media.

Há muitos anos que tenho esta convicção, já pública e publicada, devidamente fundamentada em testemunhos e testemunhas que, na sua grande maioria, já morreram ou ficaram a espernear na árvore em que se enforcaram.

Enquanto vou relendo alguns livros da minha vida, como é o caso “De verdade”, vou também observando como os políticos conseguem manter os seus poderes num país que já tem mais anos de democracia do que teve de ditadura salazarista. Para mim a metáfora sobre a pobreza da Judit aplica-se que nem uma luva aos políticos que se agarram ao poder como as lapas às rochas. Há por aí uma geração de políticos que não largam os ossos, cujas vidas só ficam completas quando saírem em ombros dos organismos públicos para logo de seguida, roçando o ridículo, caírem de cu na lama de uma vala onde brincam as crianças pobres.

Nota. Foi preciso esperar pelo ano de 2024 para aparecer um governo que finalmente vai proibir a RTP de facturar publicidade em concorrência com as empresas privadas que prestam o mesmo serviço mas não recebem 200 milhões de euros por ano de financiamento dos dinheiros públicos. Nada contra a RTP, mas sejamos justos; só quem é parvo é que não percebe que há muitos anos que estamos a regredir para o país que já foi de filhos e enteados. JAE.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A ciência cidadã, a D. Isaura, a D. Emília e o cheiro das palavras

Uma crónica sobre conversas ao telefone depois das viagens, o lançamento de um livro que vai fazer história e um projecto de ciência cidadã que na próxima semana poderá ler nas páginas de O MIRANTE


Esta crónica tem as marcas de uma conversa ao telefone com Isaura Baptista Bastos e uma longa manhã de volta de meia centena de livros que viajaram comigo e que preciso de arrumar de forma a não os perder de vista conforme o interesse do momento: os que ainda não li, os que comecei a ler e deixei a meio, os que li quase até ao final e deixei em suspenso, e os que tenho que ler nem que a vaca tussa, mesmo que tenha consciência que o meu tempo é finito, e se me fecho em casa a ler fico o mais infeliz dos seres humanos.

A D. Isaura tem 85 anos e é uma orgulhosa companheira de vida, e de uma vida, do jornalista e escritor Baptista Bastos que faleceu em Maio de 2017. De vez em quando falamos ao telefone e pomos a conversa em dia. Não conheço ninguém que tenha tanta alegria de viver e esteja dependente de uma cadeira de rodas, e de um andarilho, por causa de uma queda que lhe causou diversas fracturas. Cada vez que conversamos encho duas folhas de notas. Não sei para que vão servir mas é o hábito que faz o monge. Estamos sempre ligados embora só falemos de tempos a tempos. Eu porque continuo leitor e admirador do autor de "Bicicletas em Setembro" e Isaura porque vai lendo O MIRANTE como se fosse o jornal da sua terra ( e é de certo modo porque a casa em Constância ainda existe, e eu nunca vou esquecer o passeio pela Chamusca a procurarmos uma casa que eles queriam comprar por razões que agora não interessa explicar).

Esta coisa de escrever deve-se muito ao facto de as palavras terem cheiro, de haver palavras que não pronuncio por serem feias, de viajar muito, na maioria das vezes de forma imaginária. Sim, porque eu estou agarrada a uma cadeira de rodas, mas estou sempre a sonhar, embora não realize a grande maioria dos meus sonhos. Nem quero realizar. Depois como é que continuava a sonhar? O meu marido foi o jornalista que mais escreveu sobre Lisboa, mas as crónicas e as entrevistas que publicou, nomeadamente  no jornal O Ponto, jamais serão esquecidas. Tenho saudades dele, dos livros que recebia em casa, de o ouvir ler um livro de um novo autor e dizer que gostava mais do original.

Estou a misturar palavras minhas com frases de Isaura Baptista Bastos para que a crónica avance e os leitores não me chamem chato, habituados que estão a que eu seja pão pão queijo queijo. O problema é que preciso sair para a rua e dar uma volta de moto, e apanhar sol na careca e vento no rosto. Isto de ficar horas e horas seguidas agarrado aos livros dá mau resultado. Ficamos mais inteligentes mas mais curvados, mais velhos, gozamos menos os prazeres físicos das caminhadas, dos passeios à beira mar, das visitas à beira Tejo e, acima de tudo, das viagens sem destino que só possíveis quando nada nos obriga a ficarmos agarrados a um computador ou a um posto de trabalho.


No passado domingo fui participar numa iniciativa de um projecto de ciência cidadã com mais meia-dúzia de almas. Foi na Azinhaga por onde passa o Almonda que está infestado de jacintos, não tem fauna piscícola mas tem água suficiente para um barco descer até ao Tejo. Falo do assunto porque no regresso à Chamusca meti pela estrada do campo até ao Barracão do Duque e evitei passar na Golegã. A Feira para mim já era. Assim que terminar volto lá para comer um peixe assado na Adega do costume.


Domingo, dia 17 de Novembro, vou apresentar o livro de Emília Infante Pedroso que, finalmente, está nas bancas. Não acredito que o livro se torne um best seller, mas acredito que vai ter muitos leitores, e alguns vão gostar de ler a história de vida de uma menina de bem, que aos vinte e poucos anos foi internada à força, depois de ter fugido com um hippie e ter sido presa em Espanha por ordem da família. Emília Infante Pedroso descende de uma das famílias mais conhecidas da vila, e a sua autobiografia vai ficar a marcar para sempre o meio chamusquense, que nunca teve ninguém com o seu estatuto a escrever sobre a terra e algumas aventuras e desventuras. JAE.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Uma leitura que é uma aventura: "O Coronel e o Lobisomem"

Estou sentindo bafo de caça maior, aí pela ordem de uma onça,  bem mamada e melhor criada. Vosmecês todos, gente de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.


Quem me conhece sabe que não sou loroteiro ou espalhador de falsos. Mato a cobra e mostro o pau. Com esta voz grossa que Deus engastou na garganta do neto do meu avô, não há desavença que eu não desmanche na força do berro, muitas vezes no intervalo de uma chupada no charuto debruçado na varanda do beiço. 

Um dia encontrei um camarada vingancista que ameaçou que eu não pegava o tempo das águas com vida no corpo. Como fosse mês de agosto aproveitei para fazer ironização: seu boi de chocalho, em tempo de sapo, de jacaré pedir agasalho, já combati até com trovão. E sou homem de comer vivinho qualquer querelante (embora de verdade, no meu natural, até sou capaz de pular de lado para não matar minhoca). Metido ao barulho, disse sem ostentação que Deus não cresceu o neto do meu avô para que ele desperdiçasse toda essa grandeza em raiva de anão, em ódio de sujeito nascido para caber em anel de costureira, aguardenteiro de curtas letras que mal sabia assinar escrituras e recibos de cachaças.


Sosseguei na espreguiçadeira,  bem comido e charutado, barba repousada no peito. Senti no rosto um ventinho candeeiro de água. Enquanto dormitei, ri no íntimo e abri o livro de S. Cipriano em parte que eu conhecia: o caso de uma penitência levada da breca, coisa acontecida num longe antigamente, que nem o lobisomem era de existir mais de corpo inteiro. Um cachorro olhava e gemia um gemido comprido, de ser medido a metro. Um boiadeiro, joelho em terra, pois era muito devocioneiro, procedeu ao sinal-da-cruz, e em reza forte caiu e depois sumiu em viagem maluca no seu cavalo branco de luar.


Por causa de uma menina professora nunca andei tão embonecado na vida, e viajava de longe a mata-cavalos em água de cheiro, coisa de causar admiração mesmo ao nariz mais acostumado a essa mimosura. Só do baú de um cometa arrematei toda a praça de sabonete, fora as encomendas. O povo fuxicava de tal esmero: o Coronel tem moça em vista. Nem galante das ribaltas podia comigo. Quando retirava o lenço do bolso traseiro, que é onde aprecio guardar essa utilidade, o cheiro do frasco saltava longe. Nos rodados do vestido da menina Isabel, meu atrevimento encolhia. A boca do Coronel, dona de tanta fala, nessas especiais circunstâncias perdia venenos. Um dia, a moça que era de trato fino, rasgou seda: muita honra, Coronel. Respondo no mesmo pé de educação: a honra é minha e dela não abro mão.


No tempo em que ainda era negócio limpar picada de surucucu, já havia curador que em mais de um mês não tinha um caso de veneno. O povo botava de quarentena o ofício de Tatu e a criançada corria de urina no ponta do birro ao sentir o cheiro da mulinha do curador que tinha fama, vinda de longe, de manobrar dente de cobra. Noite alta, no cemitério de São Gonçalo, viram o curador alisar a cabeça de jaca de uma surucucu; não só alisou como falou na orelha dela coisas e segredos próprios das serpentes. Com a ponta do dedo avivou o saco de peçonha da cobra que logo ficou tomada de raiva, possessa, e por um buraco da coberta picou um pardavasco em veia mortal. Foi ele e outro alguém nenhum, que desses poderes do mato só Tutu tem a segredagem, disse o povo acusador. 


Estou sentindo bafo de caça maior, aí pela ordem de uma onça,  bem mamada e melhor criada. Vosmecês todos, gente de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.


Um danoso de um Lobisomem, se passasse no carrascal, não fazia tanto estrago na coragem dos meus agregados. Encarei de frente o medo da comitiva era de escorrer do rosto igual a leite de mamão. Segurando esses receios pela goela, fingi aborrecimento. Isto é uma companhia de caça ou acompanhamento de defunto?


Sei comandar com mão de ferro e punho doce. E se for cavalo sou capaz de o fazer relinchar nas patas do coice. Nas minhas viagens nao careço de mijão na rabeira; e hoje cheguei de viagem no Sobralinho mais água podre do que gente. 


O texto desta crónica é roubado à leitura de um livro que é um dos melhores de sempre em língua portuguesa, do Brasil, e que embora já tenha chegado à meia centena de edições, sempre pela mesma chancela, nunca me apareceu pela frente. Até há meia dúzia de dias no mesmo lugar de sempre, no Rio de Janeiro, em casa de amigos que gostam tanto de vinho ribatejano como de livros. Chama-se O Coronel e o Lobisomem, da autoria de José Cândido de Carvalho, e é uma experiência de leitura de se lhe tirar o chapéu e o couro cabeludo. Não resisti ao prazer da leitura e fui roubando alguns trechos que juntos deram esta crónica. 

Uma nota final: os editores europeus perdem as botas e os sapatos de engraxar a caminho das feiras do livro de Frankfurt e etc, para comprarem direitos de autor de escritores que, a maioria das vezes, são ou foram alunos de escrita criativa dos professores universitários que trabalham para as editoras. E assim se faz a vida e enchem as estantes de novas estrelas, e se esquecem, e muitas vezes se escondem, as verdadeiras jóias da nossa literatura. Neste caso acho que nem podemos falar de dinheiro e interesses económicos, mas de uma estúpida ignorância sobre a realidade da literatura brasileira e da sua qualidade. JAE.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O fecho do edifício da Segurança Social: os políticos não berram com medo de serem chamados de ovelhas?

O edifício da Segurança Social de Santarém está fechado porque põe em risco a saúde dos seus trabalhadores. O caso é recorrente. A instituição é uma das mais importantes do Estado, talvez mesmo a mais importante. Santarém está a sair do mapa? Parece. Desculpem qualquer coisinha mas o que se está a passar parece brincadeira de carnaval.


Três horas numa livraria de um aeroporto passam tão rápido como a leitura de um poema. Mas em três horas, quando a livraria é grande, como era o caso, dá para ler e reler vários livros, actualizar a saída das novidades, tirar notas sobre alguns títulos e autores e, acima de tudo, fotografar para a galeria do tmv as capas dos livros que hei-de procurar nos próximos tempos no mercado dos livros usados.


Hoje ouvi um taxista, a contar de outro taxista, como o colega foi apanhado a roubar turistas no cartão Visa na hora do pagamento. E como ele diz que reage cada vez que lhe aparece um gringo com a pele cor de laranja a querer uma viagem no seu táxi. Ele confessa que entra em êxtase, em paranóia, a tentar perceber quanto é que vai conseguir roubar. Conta que os olhos dele brilham mesmo agora que está a contar depois de ter sido apanhado em flagrante, ter apanhado duas semanas na prisão e ter gasto com um advogado metade do que roubou nestes últimos dois anos para agora estar solto. Enfim, todas as histórias mais macabras de alguns livros não ganham à realidade nua e crua que nos morde os calcanhares todos os dias.


Passei um mês sem atender ou fazer chamadas de telefone. Só usei o WhatsApp com quem sabia que eu estava offline na rede da Vodafone. Mas não deixei de cair no conto do vigário das empresas de comunicação. Numa das viagens liguei o número alternativo para as atrapalhações e esqueci-me de desligar os dados móveis. Assim que entrei no éter caiu uma mensagem a informar que iam ser debitados 40 euros na minha conta. Tudo sem que eu fizesse qualquer chamada. Se isto não é uma gatunice é o quê? O problema é que todas as operadores trabalham com as mesmas regras para fora da Europa. Só baixam os preços e as condições quando forem obrigados, como aconteceu recentemente para toda a UE por decisão conjunta dos países. Cambada de sacanas é o que eles são. Vou usar a rede o menos que puder e usar o WhatsApp até à exaustão. E vou escrever à ANACOM a pedir contas.


Na passada semana se fosse eu a desenhar a primeira página do diário O MIRANTE dava a capa toda à Conceição Silva que conta uma história de vida que é um exemplo para muitos de nós que queremos morrer por causa de uma queda à saída da porta da rua. A sua história de vida vale por uma dúzia de livros de auto-ajuda; e é um exemplo de superação que todos devíamos lembrar sempre que choramos ou baixamos a cabeça perante aqueles desafios mesquinhos do dia-a-dia que nos tiram anos de vidas, quando muitas vezes só precisavam do uso da nossa capacidade de fechar os olhos e seguir em frente.


O edifício da Segurança Social de Santarém tem um problema grave que impede os seus trabalhadores de comparecerem ao serviço correndo riscos de saúde. O caso tem muito tempo e parecia ter sido resolvido com as obras de há cinco anos. Não foi e volta a repetir-se obrigando ao fecho das instalações. Estão fechadas desde 1 de Outubro e ninguém sabe quando abrem. Santarém é a capital do distrito de Santarém, não é uma povoação do interior com meia centena de habitantes. Por muito respeito que nos merecem as aldeias, e merecem, estamos perante um ataque a uma cidade que tem perdido quase todos os serviços do Estado e agora até um serviço local de grande importância para a comunidade fecha de um dia para o outro como se os interesses dos cidadãos pudessem ser usurpados a qualquer altura. Não temos nada contra a Segurança Social, e muito menos contra o seu actual presidente que é Octávio Oliveira, um conhecido dirigente do PSD da região, conceituado pelos vários cargos que já exerceu na região e no país. Mas há aqui qualquer coisa que não bate certo. Não há explicações  para dar à população: a comunicação social não merece uma explicação para poder, em nome do interesse público, comunicar com os leitores que esperam que não nos acomodamos e façamos o nosso trabalho? É preciso escrever ao primeiro-ministro para sabermos se as instalações da Segurança Social de Santarém estão embruxadas ou é a cidade de Santarém que fica tão longe da civilização que os seus habitantes bem podem protestar que estamos condenados à miséria franciscana? Eu não me conformo e sou daqueles que ainda sonha viver dentro de uma caravana no meio do campo para não pagar rendas e impostos e, quem sabe, perder o cartão de cidadão e nunca mais o encontrar. É claro que estou a falar de projectos para daqui a uns anos quando já não acertar com as teclas do computador.

Resumindo: um pouco de humor não fica mal depois de me terem escrito para falarmos deste assunto até à exaustão porque há aqui tramóia, e em Santarém falta cidadania activa, os políticos não berram com os líderes das instituições com medo de serem chamados de ovelhas e quem paga é o cidadão? Só estou a perguntar porque a Segurança Social é uma das maiores instituições do Estado e os seus dirigentes não vivem dentro de uma redoma, ou pelo menos não deviam viver. JAE.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Touradas à vara larga no Ribatejo, Rilke, Rodin e Cézanne

Num tempo em que está quase tudo em regressão, a começar no SNS e a acabar nas grandes bebedeiras que se vivem nos Ministérios, onde os parasitas se instalaram para que a reforma do Estado nunca mais se faça, falar de arte e de artistas pode ser gozar com quem trabalha, mas não é, porque até me dói a mão por não conseguir ainda dizer mal dos gajos dos sindicatos que se tornaram meninos de copo de leite.


Mesmo longe do trabalho, melhor dizendo, mesmo longe do ambiente de trabalho, não passo menos de duas a três horas por dia no computador a pôr o correio em dia, tratando de assuntos pendentes ou de novos assuntos que vão caindo no colo, embora indirectamente. Nada disso me impede de fazer caminho, de conhecer novos lugares e pessoas (dantes escrevia fazer novos amigos), ler muito e ver cinema que é, em conjunto com a leitura e a escrita, a minha ocupação preferida.

Há um ano encontrei finalmente em tradução para português um livrinho de Rainer Maria Rilke que procurava há cerca de uma década e que tem sido uma fonte de inspiração ao longo de releituras que fui fazendo nos últimos tempos. No dia anterior ao que escrevo esta crónica  encontrei outro livrinho, cuja existência desconhecia, e que explica segredos da escrita do outro, tão precioso ou ainda mais que o anterior.

O primeiro era sobre a arte de Rodin, este é sobre a arte de Cézanne. Não sou nem quero ser crítico de arte, mas as biografias dos grandes artistas interessam-me como me interessa ter boa saúde. Daí que depois das tais três horas de trabalho a um sábado, fechado num quarto de hotel, tenha continuado de olhos postos num livro, e depois no computador, para fazer pesquisas lendo sobre um artista "que teve uma vida inteiramente dedicada ao trabalho, sem o apoio de ninguém, sem descanso e sem medir consequências", construindo "uma obra que a maior parte dos críticos depreciará grosseiramente durante a vida do pintor". 

Tal como Rilke, ao visitar durante vários dias a mesma exposição de Cézanne, procurou captar influências para a sua Obra, também eu, ao dedicar-me à leitura destas biografias que contam a vida de figuras que viveram há mais de um século, procuro um sentido para ver melhor o que me interessa, como hei-de sobreviver no meio da selva onde me perdi e me achei várias vezes, tal como se vive para obedecer ou respeitar um oráculo: já vi e vivi muito, mas nada que me satisfaça o suficiente para viver sem trabalhar.


Num tempo em que parece que regredimos décadas no SNS, e o novo governo ainda não teve tempo de substituir todos os gajos encartados que tomaram conta da máquina do Estado, e fazem gazeta ao trabalho; repito: num tempo em que o novo Governo em vez de limpar os Ministérios, como por exemplo o da agricultura, cheio de parasitas, que só fazem peso ao chão e ganham do bom e do melhor, em vez disso anuncia que vai limpar os quadros da RTP que, por muito que também precise de uma limpeza não me parece de todo uma prioridade; num tempo em que a imigração continua descontrolada, a Caixa Geral de Depósitos e banca em geral continuam à rédea solta; num tempo de vacas magras, falar de Rilke e de Rodin e de Cézanne até parece que estou a gozar com quem trabalha. De verdade não estou, mas também não sou o pai da malta. E até me dói a mão de não conseguir escrever contra os gajos dos sindicatos, que se transformaram em meninos de copo de leite bem remunerados, a confiar no que vai acontecendo por aí em algumas autarquias, onde as touradas são à vara larga, mas os sindicatos deixam andar porque, ideologias à parte, todos os autarcas são toureiros da mesma quadrilha e que ninguém pense em mexer com os interesses instalados. Quanto a alguns trabalhadores, bico calado ou ainda perdem o emprego e a boa vida. JAE.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Acervo literário de António Lobo Antunes foi projecto para uma Casa da Literatura em Torres Novas

No mandato de António Rodrigues a câmara de Torres Novas aprovou em 2008 a cedência de uma habitação de férias que tinha como contrapartida a cedência pelo escritor de um vasto acervo literário. A ideia não passou do papel.


O escritor António Lobo Antunes, ponderou a possibilidade de ter uma casa no concelho de Torres Novas, cedida pela câmara municipal, e chegou a deslocar-se ao concelho para a visitar, mas a ideia foi abandonada, sem que tenha sido divulgada qualquer explicação.

A minuta do protocolo de cedência da 'habitação de férias', foi aprovada a 31 de Janeiro de 2008, pelo executivo municipal, no decurso de uma reunião privada. O edifício que o escritor iria utilizar, seria o da antiga escola do primeiro ciclo do Almonda, após obras de reabilitação.

O período inicial de utilização seria de vinte anos, em regime de comodato e, em troca, o escritor cederia o seu acervo literário à autarquia, constituído pela biblioteca pessoal, incluindo primeiras edições de obras de sua autoria, manuscritos e objectos pessoais, fotografias, pinturas, bem como prémios e condecorações, para futura criação de um núcleo literário na cidade, denominado Casa da Literatura.

A única ligação conhecida, que o escritor tinha a Torres Novas, era o facto de o seu irmão, Pedro Lobo Antunes (falecido em Dezembro de 2013), ali residir na altura, e ser vereador na autarquia, que era presidida por António Rodrigues (PS).

“É do interesse do município de Torres Novas criar um espaço para conservação e divulgação do espólio de António Lobo Antunes, no âmbito da política de revitalização cultural consagrada nos projectos Cidade Criativa e Torres Novas.pt (ponte para todos), que passa, pela recolha, conservação e disponibilização ao público de novos acervos artísticos e literários de relevo”, podia ler-se na minuta do protocolo que António Lobo Antunes acabou por não assinar.


Reedição de biografia de António Lobo Antunes que todos vão querer ler

O escritor António Lobo Antunes, que esteve para inaugurar uma Casa da Literatura em Torres Novas, deixou de escrever por razões de saúde. A reedição de uma biografia de João Céu e Silva conta como o escritor ficou “Irreconhecivel”.

Há um livro que todos os portugueses vão querer ler, mais tarde ou mais cedo, que é a biografia de António Lobo Antunes (ALA), que João Céu e Silva acaba de reeditar com a chancela da Contraponto do grupo Bertrand. Exagero na generalização? Talvez. Mas arrisco o palpite. António Lobo Antunes deixa uma marca na literatura portuguesa que pode ser superior a tudo o que até agora se julgava. Muitos de nós não tivemos paciência para o ler como eventualmente merecia, mas ele nunca se cansou de escrever, e dizer, muitas vezes até de forma arrogante, que andava a escrever o que de melhor a literatura portuguesa já teve na sua história mais recente.

A reedição da biografia de António Lobo Antunes, escrita por João Céu e Silva, tem muitas novidades em relação à primeira edição, e a informação mais importante é a de dar conta que o escritor está demente e, logo, “irreconhecível”, como escreve o seu biógrafo situando-nos nos últimos dias do ano de 2023, depois do autor de “Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar” ter sofrido de uma pneumonia, que curou no hospital, quase passando incógnito durante o internamento. Mas o problema de saúde que o fez desinteressar da escrita já vinha desde o período do confinamento da pandemia da covid 19. O homem que vivia para escrever, e que sentia culpa quando não escrevia, como se lhe tivessem dado um dom e não o estivesse a transmitir, perdeu a noção do mundo que o rodeava; “Ele que fumava como se imitasse a respiração, agora nem sabia para que servia um cigarro, mesmo que, de muito em muito longe, levasse os dedos à boca num gesto sem propósito”.

Viajei com a biografia de ALA na mala e a presença do livro é quase um desassossego. Acabei de percorrer uma rua movimentada de uma grande cidade e de passar por um vendedor de rua que tinha “Memória de Elefante” no chão, entre dezenas de outros livros desinteressantes. Embora a minha relação com o dinheiro esteja numa boa fase (gasto dinheiro em livros sem querer saber se há amanhã), só precisei de gastar um euro e meio para comprar este exemplar em bom estado de conservação. Aqui onde estou é tudo barato, principalmente os livros em segunda mão. A epigrafe do livro é esta: “Há sempre uma abébia para dar de frosque, por isso aguentem-se à bronca. Sentença de Déde ao evadir-se da prisão”. “Memória de Elefante" é o primeiro romance de ALA, lançado em 1979, e a epígrafe parece ter sido escrita para lembrar a aventura dos reclusos que recentemente fugiram da cadeia de Alcoentre.

Na cidade do México, Rio de Janeiro, Santiago do Chile, Buenos Aires, Londres, Paris e Madrid, só para citar algumas das maiores cidades do mundo, é normal encontrar livros de Paulo Coelho nas ruas, livros baratos que na maioria dos casos custam menos que um galão e um pão com manteiga. António Lobo Antunes também começa a ser popular no estrangeiro, ao ponto dos seus livros começarem também a ser negócio para quem faz banca no chão e vive do que a rua lhe reserva. Foi hoje o caso. Precisava deste encontro para trocar a ida à praia por duas horas ao computador para alinhar estas palavras e escrever que João Céu e Silva tem nas bancas um livro biográfico que vai fazer história, um livro imperdível sobre uma alma atormentada que nos deu uma Biblioteca de Babel nos seus quase cinquenta anos de escrita, ao ponto de confessar que quando não estava a escrever se sentia culpado, como se lhe “tivessem dado uma coisa e não estivesse a transmiti-la”.

ALA foi sempre marcando pontos nas entrevistas que deu ao longo da sua vida. Há vários livros só de entrevistas assinados por diferentes autores, onde ele exercita esse dom de falar de si e da sua arte como poucos escritores o souberam fazer, mas nesta viagem com João Céu e Silva os tempos são outros, as falas retratam uma realidade onde já se pode fazer um retrato definitivo do escritor, embora correndo sempre o risco de o definitivo voltar a provisório devido à grandeza da sua Obra e do que vai deixar em testamento, para além do que se conhece.

António Lobo Antunes está vivo mas demente, a cabeça deu o berro, mas o que ele escreveu e disse ao biógrafo vai perdurar nos tempos que se vão estender por muitos e muitos anos.

O biógrafo diz que nas últimas sessões gravadas para este livro ficou com a sensação de que ele estava a fazer as últimas confissões ao mundo:  “disse tudo sobre si e sobre os que ama; falou de quem ignora, respeita ou admira; benzeu e excomungou; desfez e elegeu o melhor e o pior dos homens e das mulheres que conheceu; definiu o bem e o mal sob o seu olhar; estruturou e desconstruiu  factos aceites e memórias ditadas e, principalmente, foi o escritor cuja alma não se desliga já do corpo do homem”.

“Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes” é a narrativa do ocaso de um escritor, entrelaçado com a história de quatro décadas de uma revolucionária criação literária, que o tornou no principal autor vivo de língua portuguesa”. JAE.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

A lição que José Saramago deu a Santarém ao escrever a História do Cerco de Lisboa

José Saramago escreveu "História do Cerco de Lisboa" sempre a pensar na cidade de Santarém e na conquista do castelo aos mouros. Aparentemente ninguém da área cultural da câmara leu o livro, e se leu desperdiçou uma boa oportunidade de chamar a terreno o livro e uma certa propriedade sobre a obra que Saramago nos legou.


Tal como escrevi na crónica anterior li "História do Cerco de Lisboa" nos primeiros cinco dias de uma viagem que mesmo agora começou. O meu Saramago de "Memorial do Convento" fraqueja em alguns romances, mas este, embora não se leia de uma penada (é preciso ir procurando motivação a cada página), tem uma particularidade que me agradou e impulsionou à leitura sem medo de ficar pelo caminho: a História não é só sobre o Cerco de Lisboa, é também ao longo de todo o romance histórico a memória da conquista de Santarém aos mouros pelas tropas de D. Afonso Henriques, que aconteceu meses antes deste Cerco de Lisboa. Das referências ao livro nunca li sobre essa particularidade que, acredito, só interessa aos bairristas como eu, ou, melhor dito, aos que gostavam de ver a região de Santarém no mapa e menos genuflexões da classe política aos poderosos da capital. Dou um exemplo: a região do Ribatejo, e Santarém em particular, têm condições para organizar uma Feira de Turismo em vez de ir encher os bolsos dos gestores da FIL. É mais fácil cada concelho da região ir em excursão para Lisboa, mas seria muito mais rentável, lógico e politicamente correto, que fossem os lisboetas a virem a Santarém ou à região do Ribatejo à procura do turismo mais barato e de qualidade, que ao contrário, sermos nós a montar a banca no território lisboeta deixando lá os anéis e os dedos. 

A casa e os caminhos de José Saramago na Azinhaga são só um dos mil pretextos para provarmos que também sabemos vender o nosso património imaterial, já que o material está aí à vista de toda a gente. O português da área metropolitana de Lisboa ia adorar saber que o Ribatejo está a renascer para o turismo e tem ofertas imperdíveis que não se encontram no litoral nem nos algarves.


Lendo Saramago em “História do Cerco de Lisboa”, não é difícil perceber que as dezenas de vezes que o autor de "Pequenas Memórias" recorda a  tomada de Santarém aos mouros, enquanto desenrola a sua trama, está a carregar na tinta em nosso nome, a desafiar-nos a não nos vergarmos à importância da cidade do mar da palha, quando o Tejo largo e inspirador tem o seu maior encanto é enquanto se espraia na Lezíria e no bairro das terras que unem os ribatejanos e os beirões. Aparentemente ninguém ligado ao pelouro cultural da cidade de Santarém leu este livro publicado há trinta anos. Se leu desperdiçou uma boa oportunidade de chamar a terreno o livro e uma certa propriedade sobre a obra que Saramago nos legou.

A agricultura já foi, e as tradições ligadas à vida agrícola já eram há muitos anos, mas a Feira Nacional da Agricultura continua aí como se a agricultura ainda fosse a nossa identidade económica e cultural. O Turismo é há muitos anos a galinha dos ovos de oiro, anunciada e festejada em todas as regiões, mas principalmente em Lisboa onde a actividade já ultrapassou todas as limitações impostas por uma política de protecção dos interesses dos munícipes e da própria sobrevivência e identidade da cidade. No entanto, aqui em Abrantes, Tomar, Torres Novas, Ourém, Almeirim, Santarém, Cartaxo e Azambuja, só para citar alguns concelhos mais importantes, a mentalidade ainda é a dos velhos agricultores, hortelões e criadores de gado que justificavam a Feira do Ribatejo. Sem querer ofender os políticos que estimo, e com quem gosto de ser solidário no dia-a-dia, sabendo que o nosso país é governado entre a Assembleia da República e o Terreiro do Paço, pergunto: não está na hora de nos deixarmos de tantas touradas e pegas de caras e apostarmos mais no turismo e nos turistas que gostam mais de ir ver os bois ao campo do que nas praças de toiros? 


Esta lição de José Saramago, que aparentemente ninguém leu, ou se leu fez moita carrasco, deveria ser estudada e posta em prática. 

Do romance não falo porque cada um come o que quer em termos de literatura. Aviso já que o texto não é para qualquer um. A história volta a ser biográfica porque o personagem principal trabalha numa editora como revisor, oficio que José Saramago também desempenhou durante cerca de vinte anos, muitos antes de "Levantado do Chão", embora também traduzindo livros e secretariando na relação com os autores, como provam as imensas cartas com os grandes escritores seus contemporâneos, e não só. JAE.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A CGD cobra dez euros pela recuperação do pin do multibanco

A CGD está a penhorar os bens de casa de Joe Berardo para conseguir recuperar alguns créditos concedidos em situação de alto risco e que o empresário nunca pagou. Entretanto a gestão danosa dos gestores ficou por julgar e agora quem paga é o povo e as autarquias começam também a dar um jeitinho. 


A Caixa Geral de Depósitos (CGD) é o banco do Estado mas não há nada na sua organização que o diferencie da banca privada e comercial que trabalha no mercado. Pelo contrário. As regras para as pessoas que trabalham para o Estado não facilita que o cidadão receba o seu vencimento se não tiver conta na instituição, e há casos em que a cobrança por um pequeno serviço é pornográfico, o que não acontece com outros bancos. Dou um exemplo: se nos esquecermos do pin do cartão temos que pagar dez euros para nos darem novo número. Em qualquer banco da concorrência é minha convicção que o gestor de conta resolve o assunto com uma perna às costas. Na CGD é tudo como nas grandes empresas onde se paga o luxo do atendimento presencial, das instalações, dos horários dos balcões cada vez mais reduzidos. Na CGD quase que podemos pôr as mãos no lume em como não acontece nada parecido com o caso BES, mas no resto é tudo pior que a banca concorrencial.

Por ser um banco do Estado, a CGD está ainda sujeita a servir de conforto aos políticos que governam o país quando são mais oportunistas e aproveitam a sua situação de privilégio para beneficiarem os amigos ricos que dominam a economia. Era normal que a CGD fosse o banco do povo no crédito à primeira habitação e ao apoio ao primeiro negócio, ou à criação de trabalho por conta própria. Infelizmente não é nada disto que se passa. O exemplo mais conhecido de má gestão,  verdadeiramente escandaloso, é o de Joe Berardo, que se aproveitou dos políticos amigos do Partido Socialista que tinha na gestão do banco do Estado para enriquecer ainda mais. Nesta altura a instituição está a penhorar os bens da sua casa, o que é ridículo e mostra até que ponto as instituições do Estado podem ser um buraco negro quando são geridas por gestores incompetentes. 

O fecho dos balcões da CGD, já anunciados, é uma vergonha para o seu actual presidente, Paulo Macedo, que deu crédito à instituição e que já manifestou o desejo de continuar no lugar. Mas as notícias que chegam da Chamusca e de Alpiarça confirmam aquilo que já sabemos: as autarquias vão dar uma mãozinha ao banco do Estado que em nada se diferencia nos serviços bancários aos seus munícipes.

Não é justo. Os autarcas são livres de fazerem como entendem a gestão do orçamento da câmara, mas é preciso denunciar estes favorzinhos, estas negociatas que não fazem qualquer sentido quando o banco não beneficia em nada os munícipes do concelho nem vai beneficiar no futuro.

Os favorzinhos de alto risco que marcaram a vida da CGD entre o ano de 2000 e 2015, fez com que Joe Berardo deixasse uma dívida monumental que agora a actual administração quer reaver penhorando os bens de casa. Não vai chegar nem para as despesas, mas pelo menos o Estado mostra que é pessoa de bem. Falta mostrar que somos mesmo um Estado de direito e levarmos a tribunal os gestores que promovem estas desgraças de gestão danosa, já que não há nada a fazer quando nos pedem dez euros para recuperarmos o pin do cartão multibanco. JAE.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

A política, a literatura e um elogio a João Céu e Silva

Nada melhor para falar de política que meter a literatura pelo meio. 

Portugal tem tantos institutos públicos como tem impostos no activo para as empresas e os empresários. Dizem as associações que são mais de quatro mil. Quando li a notícia não quis acreditar, mas é verdade, e mesmo que não tenha ido procurar como é possível um Estado ter quatro mil impostos activos não deixei de pensar no assunto.

Por causa de uma frase de José Saramago, cuja obra também vive comigo todos os dias, consegui desenvolver alergia aos políticos de meia tigela que vivem à sombra dos cargos dos institutos públicos, saltando de um para outro ao longo dos anos como as raposas saltam de galinheiro em galinheiro. “O heróico num ser humano é não pertencer a um rebanho”.

Estou a escrever com a “História do Cerco de Lisboa” na mala para amanhã viajar bem acompanhado. Dizem que é um dos seus melhores livros, mas também já diziam isso de “Todos os Nomes” e não é definitivamente melhor do que “Manual de Pintura e Caligrafia”, provavelmente um dos menos lidos e talvez um dos melhores e mais biográficos, embora bem anterior a tudo o que Saramago escreveu já como escritor famoso.

Enquanto escrevo esta crónica leio a notícia de que João Céu e Silva vai republicar a biografia de António Lobo Antunes com uma grande diferença; há uma introdução que anuncia que o escritor está vivo, mas demente. Há dias falei dele aqui a propósito de Vale Abraão, de Agustina, e não disse que ele quase destrata José Saramago no prefácio do livro, embora não seja novidade que a rivalidade pode cegar. Já a prosa, quando é boa literatura, como é o caso de Agustina, a autora de a Sibila, “com quem se aprende como as trevas são claras e como tudo é excepcional. Os livros de Agustina são um alimento difícil porque a transgressão sistemática dos nossos conceitos racionais é metodicamente eficaz, substituindo-os por uma espécie de nudez primordial, escreve Lobo Antunes”.

João Céu e Silva, também biógrafo de José Saramago, é um jornalista do DN natural de Alpiarça, o mais destacado jornalista da actualidade a dedicar-se à literatura. João Céu e Silva tem uma vasta obra publicada, alguns livros premiados, e, ao nível das biografias, é um verdadeiro recordista com livros publicados sobre Álvaro Cunhal, Pulido Valente, Maria Filomena Mónica, Manuel Alegre e Miguel Torga, para além dos já citados Saramago e Lobo Antunes.

Nada melhor para falar de política que meter a literatura pelo meio. O que eu queria mesmo escrever esta semana era sobre os milhares de institutos públicos que servem às mil maravilhas para dar emprego à rapaziada dos partidos políticos que não gostam de dobrar a mola e só sobrevivem por serem parte do rebanho. Tenho razões para me queixar de alguns fantoches que ocuparam lugares em organismos de Estado de grande relevância, e sei que alguns nos fecharam a porta para agradarem a camaradas que se foram queixar de trabalho editorial que não lhe agradava. Não tenho mordaça e podia escrever os nomes deles, mas a decência ainda é uma virtude e, neste caso, aplica-se o ditado: nomeá-los é dar-lhes importância.

Enquanto escrevo deito o olho à mala de viagem e tento perceber do que é que me vou esquecer desta vez.

Quem não viaja não tem ilusões. JAE.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O mau exemplo da ESTA de Abrantes

A crise na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes vem de longe e tem uma história que mete política, professores e dirigentes que enfiaram a cabeça na areia para não verem a realidade.


A equipa de O MIRANTE orgulha-se de ser parceira no desenvolvimento da região dando visibilidade às suas instituições e aos seus líderes mas também àqueles que são apenas cidadãos empenhados nas suas tarefas diárias profissionais e familiares. 

Nem sempre fomos e somos bem sucedidos. A crise instalada na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes (ESTA) é um exemplo que merece ser estudado. O MIRANTE fez tudo o que era possível para ser parceiro da única escola de ensino superior de comunicação da sua área de influência. Fomos lá comemorar os nossos 17 anos, em 2004, levando connosco para uma conferência Francisco Pinto Balsemão que era, é ainda é, a maior figura viva da imprensa portuguesa. Assinamos, inclusive, um protocolo de colaboração que nunca saiu do papel apesar das aparentes boas vontades e entendimentos do que são as parcerias para o êxito de alguns projectos. E assim se mantém até hoje, apesar da boa relação institucional que sempre tivemos com o Politécnico de Tomar e as suas direcções. Soubemos mais tarde, muito mais tarde, que houve interferência política do presidente da câmara da altura que terá ameaçado: "ou eles ou nós".  Nunca apurámos os factos, e até hoje não conseguimos perceber como é que uma Escola Superior com um curso de comunicação consegue ignorar o trabalho de uma equipa de um jornal de proximidade que é considerado por muita gente como um caso de estudo a nível nacional, embora para nós isso seja irrelevante, pois tudo o que fazemos sabe a pouco; e de verdade, por mais que trabalhemos, nunca conseguiremos chegar a todas as frentes de trabalho.

Não sou a melhor pessoa para puxar dos galões, mas já saíram da redacção de O MIRANTE para a reforma jornalistas com quase 30 anos de trabalho na região que nenhuma direcção da Escola se lembrou de convidar para uma palestra, ou apenas para dar testemunho. Em tempos acompanhei os convites que as direcções da ESTA faziam às grandes figuras da televisão, como se o curso de comunicação tivesse no jornalismo televisivo a sua grande referência. Não tem, nunca teve, e o que já foi trabalho mediano em televisão é agora uma enxovia, um lixo, quase sempre em directo e que entope todas as sargetas das nossas ruas e das nossas indignações.

Com directores e professores virados de costas para a realidade onde vivem e trabalham, não admira que a ESTA esteja a passar a sua maior crise. Já se adivinhava. O exemplo que estou a dar não tem nada de ressentimento, nem de melindre, tem sim algum sentimento de desgosto e de pena por não fazermos parte dos parceiros de uma Escola que forma pessoas, que mais tarde têm a missão de ajudar a mudar ou melhorar o mundo local, ligados a empresas em que O MIRANTE é líder destacado. Se a Escola estivesse a bombar jornalistas nem precisávamos de protocolos, muito menos de lamentar a falta de visão dos dirigentes da ESTA destes últimos vinte e muitos anos. Mas já na altura não era difícil perceber as dificuldades de organização da Escola e da falta de sensibilidade dos seus responsáveis para verem mais do que o que se avista do Castelo de Abrantes. 

Que este texto sirva pelo menos para que em Abrantes a política nunca mais se meta onde não deve, porque ninguém ganha nada em secar o que quer florescer à sua volta; como diz o ditado, "um fraco chefe faz fraca a sua gente". Esta é a grande lição que fica do tempo em que Abrantes tinha um presidente da câmara que vivia numa redoma; que politicamente foi um líder que só deixou maus exemplos; e a ESTA era governada por professores que há menor contrariedade enfiavam a cabeça na areia para não verem o que não lhes interessava e, ou, os obrigava a saírem do trono dos reis pasmados. JAE.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Para lá do Marão mandam os que lá estão

Uma viagem de verão pelo norte de Portugal, que parece outro país para quem não tem o hábito de viajar de Coimbra para cima; e uma visita à Feira do Livro do Porto para ouvir a Pilar.


Estou num sítio à beira da estrada, numa aldeia perto de Alfândega da Fé, num turismo rural com café e restaurante, e os meus companheiros de sala são todos transmontanos. Sinto-me em casa e percebo que tudo o que gira à minha volta é obra de uma jovem família que trabalha de dia e de noite. Lembro-me do café restaurante do Perneta, perto do Chouto, onde o pessoal da minha terra, nos idos anos setenta, ia encher a barriga em grupo e, algumas vezes, em família.

O arroz-doce não tinha a casca do limão, mas era como se tivesse; o cheiro a perfume na sala fez-me lembrar o cheiro das mulheres nos casamentos e nos dias de festa quando acompanhavam as filhas aos bailes da colectividade. O facto de ser sexta-feira deve explicar a sala cheia, o que obrigou alguns clientes a entrarem numa outra sala do restaurante que ficava longe da vista. 

Numa mesa perto da minha, seis homens sessentões comemoravam uma data festiva. Identifiquei-os um a um com outros homens de trabalho que conheço da minha terra e das terras vizinhas. O que falava mais tinha um bigode em forma de ferradura. Parecia um actor francês dos filmes dos anos sessenta; o cabelo meio esbranquiçado, farto, tinha o molde do boné, o pescoço com uma bossa acentuada; era o único que não bebia vinho tendo optando pela cerveja. Só falaram de trabalho. Dois deles quase que não balbuciaram palavra de tão concentrados que estavam nas postas do bacalhau. Na minha terra e nas terras vizinhas há muitos anos que se perdeu este espírito de grupo, de vizinhança, de compadrio, no bom sentido da palavra. Como não posso ficar a espreitar e a calhandrar todas as mesas vizinhas, concentro-me naquela onde tenho mais para aprender. O telemóvel onde tomei notas serviu também para disfarçar o interesse que tinha naquela conversa de transmontanos à volta de uma mesa. 

Uma menina de nove anos assegura o balcão do café por onde se entra para o restaurante. O pouco tempo que permaneci no espaço, lendo os programas das festas e os cartões de visita dos clientes/empresários espetados na parede, foi suficiente para ouvir o óbvio: “isto é exploração de mão-de-obra infantil”. A menina fingiu que não ouviu, tinha um rosto sério, percebi que conversa daquela, mesmo a gozar, é música para os seus ouvidos. Durante a hora e meia que demorei a roer uma costeleta de novilho, e deixei o tempo correr para não me deitar com as galinhas, passou uma dúzia de vezes no apoio à cozinha e ao serviço de mesas. O telemóvel no bolso de trás das calças e a forma como olhava para os clientes era de quem se sentia em casa e esperava estar a fazer o seu melhor dia de trabalho. Quem diz que “o trabalho da criança é pouco, mas quem o desperdiça é louco” só quis fazer piada. Uma criança de nove anos a ajudar a família consegue fazer melhor que um adulto. E não é só por conhecer os cantos à casa; é por saber onde é que é útil e não atrapalhar quem tem que estar em todo o lado ao mesmo tempo.

Um salazarista com quem convivi ainda alguns anos, e que me falava de alto quando eu era mais jovem, dizia-me com a voz grave que Portugal não é um país agrícola, mas sim um país pedrícola. É preciso ir para lá do Marão para perceber o que ele queria dizer. Mas os homens do norte não são de brincadeiras. Os filhos dos que plantaram as vinhas do Douro andam agora a plantar oliveiras e amendoeiras nas encostas das serras.

Para quem percorre aquelas estradas pelo interior “a vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: - Entre! A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso”, conta Miguel Torga que nasceu em São Martinho da Anta, perto de Vila Real.

Se alguém do meu grupo ler esta crónica, o que é improvável, vai dizer que escrevo de barriga cheia porque não aproveitei o convívio no rio Sabor até ao final. A verdade é que a Pilar del Rio falava nesse dia no encerramento da Feira do Livro do Porto e era impossível estar nos dois lados ao mesmo tempo. Por isso no último dia dormi a manhã na cama e depois regressei ao Porto a parar pelo caminho comendo amoras silvestres e espreitando a paisagem e tentando encontrar memórias de leituras de Miguel Torga mas também de João de Araújo Correia e Aquilino Ribeiro, três escritores que dormiram e ainda dormem à cabeceira da minha cama.

A Pilar, como sempre, foi igual a si própria. Leu um texto original de José Saramago, falou em espanhol porque defende que cada um deve falar a sua língua esteja onde estiver, e, para ser coerente, antes de falar da Obra e do valor do nosso prémio Nobel gozou com a classe política que na Assembleia da República censurou “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”,  e ainda disseram que estava mal escrito. JAE .

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Diário dos últimos dias de Agosto

Uma viagem de moto pelo bairro de Santarém e concelhos limítrofes daria para uma crónica alargada, mas fica aqui apenas o resumo, assim como pequenas notas dos últimos dias de Agosto.


Para almoçar na capital de distrito na terceira semana de agosto a uma segunda-feira corri Seca e Meca e Olivais de Santarém e só consegui depois de subir as escadas rolantes do Shopping. Aceito na minha caixa de correio a ementa dos restaurantes que se sintam ofendidos com a minha eventual ignorância.


Marquei entrevista com dois gajos de 40 anos para virem trabalhar numa das minhas equipas e falharam os dois. Um morreu-lhe a avó uma hora antes da reunião e o outro apareceu com roupa de morador de rua. 


A Joana esteve em Almeirim com uma figura de um organismo do Estado que nos atura há duas dezenas de anos, desde quando ganhámos estatuto para bater com o punho na mesa, e não o reconheceu apesar do sorriso e do trato pelo nome. Subiu na hierarquia. Os bons que servem o Estado não estão muito tempo no mesmo lugar. O seu ex-presidente conhece-nos desde que andamos nesta vida e a ideia é arrancar-lhe a memória de tantas reuniões em Lisboa em que só faltou brigarmos. Só espero que ainda nos tenhamos lembrado a tempo.


Depois de três meses com as lentes estragadas finalmente fui a uma óptica porque entretanto perdi os óculos de sol na praia da Ursa, num dia que parecia de Outono, em que tomei banho de brisa. Há anos que não bebia água do banho nem conhecia uma pessoa tão profissional que conseguiu desfazer o trabalho do optometrista que me acompanha há quase 20 anos. Incrível como somos resistentes. 


Entreguei para impressão dois livros que são fruto do nosso trabalho nas horas livres: "Camões, além do desconcerto", de Alexei Bueno, e "Confissões de um poeta", de Lêdo Ivo, cujo centenário se comemora este ano e é um dos meus escritores preferidos. Em meados de Setembro estarão nas livrarias. Jamais pensei que um dia ia editar um dos mais brilhantes escritores de língua portuguesa, graças à cedência de direitos de autor do seu filho Gonçalo Ivo.


Fui fazer uma viagem de mota pelo bairro de Santarém, Torres Novas, Alcanena e Golegã, onde querem construir um aeroporto internacional. Fui com uma outra motivação, mas esta ideia assaltou-me várias vezes pelo caminho. A verdade é que já nem os figos se apanham e são negócio. Os lugares multiplicam-se, o casario é muito disperso, e ali toda a gente parece que vive no fim do mundo mas onde tudo o que é terreno fica mais à mão. Como nasci e cresci numa casa entalada entre a lezíria e a charneca, o bairro parece-me sempre um lugar estranho; talvez por isso o coração veja mais do que os meus olhos.


Morreu José António Santos, Zezão para os amigos. Dizem que foi uma cirurgia simples, mas mal calculada que acabou com ele. Era pedreiro de profissão, aluno do mestre Joaquim Antunes, leva com ele os segredos de centenas de ramais de esgoto, ligações de águas pluviais e domésticas, segredos de telhados que todos os invernos metem água, paredes e muros que ainda hoje originam brigas familiares na divisão das propriedades, etc, etc. Falava pouco mas da sua profissão sabia muito. Fui seu companheiro em menino quando subíamos a "Rua do Vale" em grupo depois dos serões na colectividade da terra. Em menino é uma forma de escrever. Pertencemos à geração daqueles que nunca foram meninos, mas nem por isso deixámos de viver a vida e de deixar testemunho. JAE.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Chamusca deu o ouro ao bandido e a Ponte Salgueiro Maia é a excepção

O desenvolvimento numa parte da região centro faz-se por uma ponte de ferro inaugurada em 1908: e o último grande investimento do Governo na região ribatejana foi há 24 anos com a construção da Ponte Salgueiro Maia para aliviar a Ponte D. Luís que foi inaugurada em 1881.


 "Caro cliente a sua encomenda foi expedida, pode seguir o seu rasto aqui". Sua recente condenação em tribunal poderá ser contestada desde que peça ajuda neste sítio...". Você tem direito a uma parte de uma doação que foi deixada por....". "Há fotos a circular na internet onde você aparece em situação que pode gerar escândalo. Se quiser que as fotos desapareçam faça uma transferência de 10 mil euros....". Este tipo de mensagens é recorrente na minha caixa de correio, em Spam, e há outras ainda mais bem elaboradas que apago na hora e em catadupa.

Resolvi falar do assunto porque voltou a aparecer nos reels do facebook uma entrevista de Daniel Oliveira a Teresa Guilherme com texto falso, à medida dos interesses habilidosos de um sítio de jogos de azar. 

Decerto que para a maioria dos leitores desta coluna o correio enganoso e os textos na internet, a vender gato por lebre, são de fácil identificação. Mas num país em que as pessoas ficam perturbadas e doentes com as várias horas de imagens de guerra na televisão, de violência, de fogos e de outros desastres naturais, como é que conseguem discernimento para responderem com confiança e sem alarmes a estas ameaças que chegam pela internet?

Portugal tem uma Entidade Reguladora para a Comunicação Social que não funciona, como aliás é norma na grande maioria das entidades reguladoras, ainda mais importantes para o bom funcionamento da democracia. Neste caso estamos entregues a um organismo cheio de problemas com falta de recursos humanos, sem uma dinâmica de trabalho credível e de acordo com a força do sector da comunicação social, nomeadamente ao nível das televisões e dos sítios que controlam as redes sociais e fazem valer o seu poder.

Lisboa é a capital europeia onde estão a ser construídos mais novos hotéis. Esta semana a câmara de Lisboa pôs a circular informação que o turismo precisa de ser descentralizado dentro da cidade. Nada mais verdadeiro para quem conhece a realidade. Mas isto não é de loucos? A câmara de Lisboa vai limitar a circulação dos turistas e escolher a hora em que cada um quer subir e descer o Chiado e as ruas da freguesia de Santa Maria Maior. Enquanto isso os Tuk Tuk são às centenas mal estacionados, as trotinetas circulam sem respeito pela segurança dos peões, mais os milhares de bicicletas dos entregadores de comida que, na sua grande maioria, não respeitam as regras de circulação.

Os condutores de TVDE trouxeram uma nova realidade para quem circula em Lisboa. Param onde o cliente os espera, ou onde o cliente os manda parar. Regra geral é no meio da estrada, na curva, em cima das passadeiras, quase sem excepção. E os que conduzem pela cidade à procura de clientes são arrogantes, usam a buzina por tudo e por nada; Lisboa regrediu um século ao nível do civismo e do respeito.

Não falo aqui de Lisboa por acaso. Ricardo Gonçalves recordou recentemente que o Governo não investe na região ribatejana há mais de 30 anos. A Ponte Salgueiro Maia foi o último investimento de respeito para substituir a ponte D. Luís inaugurada em 1881. A região ribatejana ainda apanha a área metropolitana de Lisboa. Devido à A1 estamos tão próximos em tempo de viagem de Lisboa como Braga do Porto. Mas até Vila Franca de Xira é um concelho enjeitado pelas promessas do Governo; veja-se o que se passa com o edifício do Tribunal e com as escolas. Outro caso criminoso: a Chamusca deu o ouro ao bandido, ou seja, deu o terreno para os resíduos perigosos que ninguém quis dar. Mais de 25 anos depois da inauguração do Parque do Relvão o desenvolvimento de uma boa parte do território da região centro, no século XXI da graça de Deus, é sustentado por uma ponte de ferro inaugurada em 1909 graças a um benemérito chamado João Joaquim Isidro dos Reis. Enquanto em Lisboa os hotéis continuam a crescer, as esplanadas dos restaurantes tomaram conta da Rua Augusta e ruas adjacentes, a partir de Vila Franca de Xira até Coimbra a região vive dos Templários e de Fátima, a nossa Senhora dos pobres. E o mais curioso é que os nossos líderes políticos regionais enfiam a viola no saco; os do PS contentam-se em fazerem parte da corte e do negócio e os do PSD em serem parte do negócio e da corte. Não meto todos no mesmo saco, mas as excepções são tão poucas que hoje julgo a parte pelo todo sem sentir que estou a ser injusto. JAE

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Os mestres da fraude e sangue e dinheiro

A França é um dos países mais democráticos do mundo onde a cidadania dá cartas. Nem por isso a corrupção deixa de ser um flagelo tal como em Portugal. A diferença é que uma década depois dos acontecimentos já podemos escrutinar os ladrões em acção, em filmes e séries bem produzidas.

França é o país mais democrático do mundo, ou um dos mais democráticos, onde se geraram as revoltas sociais que nas últimas décadas têm feito girar, com mais velocidade, a terra à volta da lua. A mais marcante dos nossos tempos foi o Maio de 1968, e a última foi a dos coletes amarelos, coisas diferentes mas que mostram a dinâmica da sociedade francesa. Nem por isso há muito menos corrupção que noutros países desenvolvidos. O caso do imposto do carbono é um bom exemplo que espelha a fragilidade dos governos ditos de esquerda, socialistas ou social-democratas. A fraude terá custado aos cofres franceses mais de 5 mil milhões de euros, e tudo se deveu ao facilitismo que os políticos franceses proporcionaram aos mestres da fraude. Fraudes e corrupção também é com Portugal. Mas há uma diferença significativa. A do carbono foi em 2009 e já deu pelos menos um filme em 2021, e uma série com 12 episódios disponíveis na Filmin que mostram bem como o poder político tem pés de barro. Também já foram julgados e presos alguns dos empresários corruptos, mas muitos fugiram do país e jamais pagarão pelos seus crimes.

Em Portugal há muitos livros e reportagens publicadas sobre a queda do BES, a falência do Banif, a Operação Marquês, os favores da Banca a empresários manhosos, enfim, só para ficarmos com os números mais recentes da miséria humana, desde 2017 até Maio de 2013 havia cerca de 190 políticos portugueses a braços com a Justiça.

A diferença entre França e Portugal é a forma como a justiça funciona, lá é muito mais célere, assim como é diferente para muito melhor a atenção que os produtores de cinema e televisão dão aos mestres da fraude, os mestres que acham que o Estado português não tem salvação. O caso recente do dinheiro encontrado na estante do chefe de gabinete de António Costa é um bom exemplo. A classe política portuguesa está toda em causa quando foge deste debate e não promove o funcionamento da Justiça para que saibamos, rapidamente, como é que se movimenta tanto dinheiro vivo nas barbas de quem manda nisto tudo.

Cada partido da oposição, com a ajuda das associações de cidadãos, devia falar e discutir, dia sim, dia sim, como o Estado compromete o funcionamento da Justiça ao permitir, em interesse próprio, que os tribunais administrativos demorem mais de duas décadas a resolverem a maioria dos processos, onde o próprio Estado tem interesses. A grande maioria destes processos acabam só depois das pessoas morrerem, ou desistirem pelo cansaço, pela descrença no Sistema, por falta de dinheiro para pagarem aos advogados, etc, etc.

É ridículo votar numa classe política que não se deixa escrutinar quando estão todos a defender os milhões de financiamento às suas organizações, quando todos fazem tábua rasa de questões ligadas à reforma das instituições mais importantes para a democracia. JAE.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Os rios também correm para a morte

Durante três horas andei cerca de três quilómetros ao lado de um aqueduto secular que em tempos levava a água da nascente do Alviela para matar a sede à população de Lisboa; e vi à luz do luar como no rio Alviela corre uma água cristalina, embora seja fácil concluir que os rios também correm para a morte.

Sou jornalista mas não sou parvo. Por isso procuro, em função da minha vontade de viver mais uns anos com alguma qualidade de vida, empenhar-me no meu trabalho sem fazer futurologia. Em vez de ficar a ler todos os jornais e revistas e textos literários e de viagens que me chegam de todos os endereços do mundo, vou caminhar, nadar, andar de bicicleta ou de mota, ver cinema e teatro, visitar livrarias como se visita, ou visitava, a casa da avó.

Esta semana fui caminhar de noite por caminhos do Alviela à procura de ver a chuva de estrelas, mas de verdade só vi mesmo as estrelas no céu e viajei enquanto durou a caminhada e a meia hora em que estive deitado na terra a admirar a beleza do firmamento. Como para ver não é preciso estar de boca fechada, troquei conversa com pessoas que vivem na minha aldeia global e fiquei a saber que Casével, no concelho de Santarém, deve ser a única aldeia no mundo que antes de ter um projecto para a instalação de saneamento básico tem um projecto para um aeroporto internacional; e que ali bem pertinho as casas de São Vicente do Paul não têm número de porta mas os carteiros conseguem distribuir, sem problemas, o correio entre uma população que deve chegar às mil pessoas. 

Durante três horas andei cerca de três quilómetros ao lado de um aqueduto secular que em tempos levava a água da nascente do Alviela para matar a sede à população de Lisboa; e vi à luz do luar como no rio Alviela corre uma água cristalina até chegar ao território onde as fábricas e as indústrias usam e abusam das virtudes da mãe natureza. Caso para dizer que os rios também correm para a morte.

Os Olhos de D`água na Louriceira, Alcanena, são um pequeno paraíso para quem sabe, da experiência da vida vivida, notar as diferenças entre viver nas cidades atulhadas de carros e de poluição, e num território onde partilhamos os caminhos com os pastores e os rebanhos, podemos dormir ou simplesmente ficar a noite ao relento, deixar o carro à porta de casa, parar no meio da rua para ver o nascer ou o pôr do sol, mas também a chuva de estrelas mesmo que só vejamos as luzes dos aviões que tomaram conta das estradas do céu.

Escrever é como correr. Não é como mijar.

O verão é sempre boa altura para recomendar livros novos. Miguel Esteves Cardoso acabou de lançar um livro para quem gosta de escrever e não sabe como alimentar o fogo da escrita. "Como Escrever" é uma viagem com o autor como nunca foi possível nos seus livros anteriores, nem tão pouco nas suas crónicas diárias no jornal Público. O livro não é recomendado para quem não acha, como Miguel Esteves Cardoso, que "escrever é o nosso melhor meio de expressão". Também não se recomenda a pessoas que não entendem porque é que "escrever é um falar melhorado. Um falar em que temos tempo para pensar. E tempo para procurar as palavras apropriadas. E tempo para organizá-las de forma a dizer melhor o que têm para dizer". "Escrever é indiscutivelmente a melhor forma de expressão. E a mais respeitada e, logo, a que mais resultados obtém". "Corte o mal pela raíz: aprenda a escrever". Ora aqui está um livro surpreendente, escrito por alguém que é, talvez,  o melhor de todos nós a escrever, embora seja também aquele que mais deve conhecer os defeitos de quem faz tudo para alimentar a preguiça de escrever. "Escrever é como correr. Não é como mijar. E, no entanto, os principiantes escrevem como mijam: quando lhes apetece. Esperam que a vontade de escrever se torne avassaladora e depois escrevem, pressionados pela pressa de desabafar. Confundem a inspiração com a pressão da bexiga". Um livro imperdível para quem gosta do MEC e não quer morrer estúpido. JAE .

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

As curandeiras, bruxas e aprendizes de feiticeiros

O mal de inveja é um dos trabalhos mais solicitados nas consultas das bruxas; elas têm que acudir a mulheres que são traídas, cornudos mansos, gente endividada e clientes que sofrem de mau olhado.

Confesso que tenho simpatia pelas bruxas e curandeiras embora por motivos diferentes. Mas há um que é comum às duas artes que faz com que tenha interesse e goste de ir sabendo novas e mandadas do demónio: falo do jeito que bruxas e curandeiras têm para adivinhar que parte do nosso corpo é mais doente que fraco é o nosso cérebro. Jamais as bruxas governavam a vida se os nossos cérebros não estivessem, em muitos casos, em estágio na idade média. São, no entanto, as doenças mais modernas, que nos trazem a morte lenta, que alimentam a arte do demónio que bruxas e curandeiras tão bem sabem desempenhar.

O mal de inveja é um dos trabalhos mais solicitados nas consultas das bruxas; elas têm que acudir a mulheres que são traídas, cornudos mansos, gente endividada, clientes que sofrem de mau olhado, tudo problemas reais que as personalidades fracas, que não conseguem olhar o sol de frente, acham que conseguem resolver consultando as feiticeiras que, na maioria dos casos, só sabem contar dinheiro. Também há casos irreversíveis de pessoas que já nasceram com a massa cerebral grossa demais, e em vez de irem nadar no Tejo ou correr para o meio dos sobreiros para amaciarem a coisa, resolvem brigar com os pais, filhos, amigos, namorados, companheiros de trabalho, vizinhos, etc etc, e assim envenenarem a sua vida e a dos que lhe estão próximos. Nada do que escrevi até agora justifica o que deu origem a esta crónica que é o quanto gosto das bruxas. A minha última experiência foi numa feira medieval a ver uma bruxa transmitir oralmente o que designava cada runa que os clientes tiravam de um caldeirão. Dizem que a prática tem mais de três mil anos e foi retomada na idade média. Durante três horas em que vadiei por uma feira cujo recinto tinha mais de vinte mil pessoas, a fila para a Curandeira tinha sempre entre três a quatro dezenas de pessoas. Ouvi algumas gargalhadas sonoras e vi alguns rostos incrédulos. Mas tudo aquilo me fascinou porque é um artista a brincar com as palavras e com a fé dos outros, um artista devidamente caracterizado num palco a fazer jus a uma frase de Fernando Pessoa que bem pode ser adaptada a este caso: a bruxaria existe porque a vida não chega.

Para não pensarem que falo de cor... também fui à bruxa duas vezes; daquelas visitas a sério em que temos que temer pela nossa saúde mental, ou então a consulta não merece o preço que pagamos. Os resultados foram diferentes, mas podem ser explicados numa frase curta; se a bruxa te convenceu... tens que lá voltar até ficares curado do teu fraco entendimento da vida.

Conheço muita gente que atribui os seus azares às pragas, ao mau olhado, às armadilhas da inveja, aos agouros, e não posso terminar esta crónica sem dizer que ouço estas queixas desde a minha infância, na altura às mulheres que ripavam camisas de milho no palheiro do José Pedro Guilherme, na Chamusca, e algumas choravam porque na noite anterior o diabo do marido tinha levado para casa o demónio em forma de barril de vinho. Também já me rogaram pragas, enviaram cartas anónimas com pozinhos de perlimpimpim, trouxeram recados de consultas partilhadas levando o meu nome e data de nascimento; já me leram a mão e deitaram as cartas e, na maioria dos casos, quase que me deixei apaixonar pelo prazer de falarem de mim sem saberem quem eu era e sou.

Fica aqui um texto que guardo no computador que roubei das redes sociais a uma bruxa que vive como uma bruxa e que conheci por ser gerente de um alojamento local. E é o texto que me faz gostar de bruxas, coisa que dificilmente conseguiria explicar por palavras minhas.


ENCONTRA UMA BRUXA. Bruxas são mulheres sensuais, que não têm medo de demonstrar os seus sentimentos, não seguram a sua gargalhada, nem as suas lágrimas. Sentem 100% tudo ao seu redor, por isso são confusas e consideradas muitas vezes doidinhas. Elas demonstram no seu cabelo a sua liberdade, expressam a sua magia nos seus colares de pedras e cristais, amuletos especiais e tatuagens.

Podes encontrar uma Bruxa no supermercado, no corredor dos temperos, experimentando ervas soltas, mas também no corredor dos chocolates. Podes encontrar uma Bruxa na rua, distraída com o céu, a tirar uma foto do Sol, a tocar numa árvore com gentileza, conversando com um cão ou gato e até simplesmente respirando fundo. Podes encontrar uma Bruxa no shopping, toda arrumada e de preto, com os seus acessórios diferentes, com a sua cara séria, mas que sorri com facilidade. Distraída na loja do ocultismo ou mesmo na livraria.

Podes vê-la quando estás com amigos, em alguma festa, na escola quando vais buscar os teus filhos, e até mesmo no jardim quando vais passear o teu cão. Podem vestir farda e até terem um emprego super normal, mas existe algo nos olhos delas que as denunciam. A maneira como falam, como olham, como mexem no cabelo e até mesmo como sorriem. Encontra uma bruxa e encontrarás uma amiga. É muito fácil reconhecê-las, andam muitas por aí, disso podes ter a certeza. JAE.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Uma crónica para comunistas e activistas ambientais de Vila Franca de Xira que remete para um artigo de opinião

Macacos me mordam se estou só a escrever para comunistas de cabeça empedernida e activistas que são contra as touradas mas não sabem nem querem saber que em Portugal há um milhão de cães na rua abandonados pelos donos. 


A almofada da cama e a areia da praia são os melhores suportes para pousar a cabeça e ler um livro. Roubando tempo ao sono diário e mergulhos no mar, já que tenho o privilégio de ter cama e praia todos os dias do ano, ou quase, leio e percebo cada vez mais que há coisas na vida que só entram pelos olhos dentro quando se atinge uma certa idade.

Com a autoridade de leitor que pode adiar a leitura de um livro até ao último dia de vida, só agora estou a ler Vale Abraão, um dos melhores livros de Agustina Bessa-Luís que já deu filme, realizado por Manoel de Oliveira, que é bem menos interessante que o livro, como é normalíssimo nas adaptações para cinema de grandes e bons textos literários. Estou rendido e só posso comparar a emoção da leitura ao entusiasmo que sentia ao ouvir o meu avô Manuel Emídio a contar-me as histórias do cancioneiro popular. Hoje sei que esta energia que fica da leitura de um bom livro já me serve para pouca coisa que não seja o deleite da leitura. Dantes brigava com os autores e as personagens dos livros, apontava tudo o que me interessava num caderno, depois de sublinhar os livros como ainda faço hoje de forma exagerada, ou talvez não; de verdade acho que cheguei a um estágio da vida em que me sirvo da leitura dos livros como os ricos se servem do dinheiro: basta-me acumular conhecimento, como os ricos acumulam fortuna, que o resto vai-se resolvendo com o deve e haver do dia-a-dia.

O MIRANTE publica todos os dias matéria editorial que daria pano para mangas quando escrevo para este espaço. Embora a opinião seja importante num jornal, O MIRANTE é mais um jornal de grande informação que procura na notícia, na reportagem e na entrevista cumprir a sua função de serviço público. Mas esta semana não vou deixar passar o artigo de opinião de José Furtado, nesta edição, sobre o futuro aeroporto e a desgraça que vai ser para muitos munícipes do concelho de Vila Franca de Xira, e para o próprio concelho, a quadruplicação da linha ferroviária. Só quem se fingir morto pode ficar quieto e calado ao ler o artigo de José Furtado que bate numa tecla já gasta, mas nem por isso deixa de mostrar à sociedade que a solução de Alverca não pode ser ignorada e desprezada, tendo em conta o desastre que vai ser a quadruplicação da linha e a incógnita do futuro aeroporto de Lisboa em termos de financiamento e de crescimento do fluxo turístico que, a crescer desmesuradamente como todos os agentes turísticos querem, fará Lisboa rebentar pelas costuras.

Desde que o assunto entrou na agenda que O MIRANTE dá espaço aos projectos que estiveram a ser discutidos e analisados, e até a alguns como o de Alverca que ficaram pelo caminho. Por isso mesmo, ao publicarmos o artigo desta semana, gostava de aproveitar para apelar aos autarcas em geral, e aos cidadãos organizados em particular, que não virem a cara para o lado quando é preciso arrepiar caminho. Macacos me mordam se estou só a falar para comunistas de cabeça empedernida e activistas que são contra as touradas mas não sabem nem querem saber que em Portugal há um milhão de cães na rua abandonados pelos donos. JAE.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

O Healing Dance e o poder das energias alternativas

Em tempo de férias duas recordações da juventude e uma boa publicidade para quem gosta de energias alternativas e tem vergonha de pedir ajuda preferindo encharcar-se de medicamentos.

Quando ainda era jovem, muito jovem, entreguei um conjunto de poemas a um editor conhecido para publicar numa revista. Esperei mais de um ano pela publicação e, nesse meio tempo, de muita impaciência da minha parte, numa de poucas conversas que tivemos, perguntou-me porque é que eu escrevia poesia. Não me lembro da resposta, mas lembro-me de um dos seus comentários logo a seguir à pergunta já que a minha resposta deve ter sido muito vaga. “Eu só escreveria poesia se soubesse que ia escrever melhor que o Fernando Pessoa”. Se não ficou por aqui o mais que disse foi com a expressão do rosto; se ele tivesse continuado certamente que me lembrava. Devo ter fugido da conversa como o diabo da cruz, coisa que lhe deve ter agradado depois de quase me ter deixado com os cabelos em pé. 

Nessa altura era um jogador de damas que participava em campeonatos nacionais nomeadamente de problemas. E como jogador cheguei a dirigir simultâneas contra dezenas de jogadores como se costuma ver nos filmes.
Um dia ouvi de um outro amigo da onça, muito mais velho do que eu, intelectual ainda no activo, o seguinte comentário: “porque é que jogas damas se o xadrez é que é o verdadeiro jogo de tabuleiro? Fraca opção meu amigo”, disse-me ele como se estivéssemos a falar da escolha entre comer uma ameixa ou um pêssego na hora de decidir que caroço é que precisamos para depois enterrar num vaso. De verdade, o jogo das damas foi uma escolha tão natural como a língua que falo, e tão importante na minha vida que me ensinou muito mais do que aprendi na escola e, em muitos casos, na vida familiar. Ainda hoje não sei jogar xadrez, e tenho pena de me ter metido no mundo da edição e do jornalismo que me roubaram o tempo que preciso, que qualquer jogador precisa, para ganhar motivação e não desistir de jogar regularmente, como já acontece comigo há muitos anos, embora vá jogando contra o computador para não deixar enferrujar o cérebro.
Estas duas histórias são as duas lições que mais recordo dos meus tempos de formação. Os dois mestres em causa eram pessoas influentes, mas cedo percebi que não ia ser aluno das suas oficinas.

Há cerca de duas dezenas de anos iniciei-me numa terapia chamada Watsu, que, entretanto, evolui para Healing Dance, que me fez despertar para uma realidade que estava longe de pensar experimentar. O Watsu pode ser dado e recebido pelas pessoas mais saudáveis do mundo, mas é a terapia ideal para pessoas com problemas mentais e físicos, pequenos ou grandes, mais ou menos graves. A terapia tem que ser realizada num tanque, ou numa piscina com a água à temperatura do corpo; o facilitador tem que ter códigos de conduta que só sabe quem imagina o que é ter um corpo nos braços dentro de água. A água termal é a ideal para esta prática. Não pratico com muita regularidade, mas este Verão já fui a dois encontros e venho sempre para casa mais jovem e animado. Confesso que a minha primeira experiência e prova de fogo foi dar terapia a um homem corpulento, mais de cem quilos, e mais peludo que o meu avô. No entanto, como estava no início e ele já era praticante, ao longo da sessão foi-me ensinando a corrigir algumas técnicas. Foi sorte de principiante, porque aprendi uma grande lição: não interessa o corpo a quem fazes terapia, interessa é a pessoa que esse corpo transporta.
Falo desta experiência de vida porque quando tenho oportunidade de praticar sinto-me de igual para igual com terapeutas que trabalham em hospitais públicos, e que vão ali buscar experiência e informação para poderem resolver problemas a alguns dos seus doentes, e deles próprios, cheios de marcas do trabalho difícil que é carregar corpos e espíritos enfermos.
Curiosamente há muito pouca adesão à terapia. Talvez o facto de ter que ser ministrada na água a 35 graus, e de haver poucos terapeutas e facilitadores, seja razão suficiente para explicar o fenómeno. As pessoas gastam raízes de dinheiro em psiquiatras, psicólogos e medicamentos, e infelizmente não procuram as energias alternativas para terem vida social e recuperarem a saúde mental e física que se tem em criança quando nada nos afecta que seja humano.
Deixo uma dica: O Rui Granja vive no Porto e tem um espaço na Rua Formosa, 349, onde realiza sessões de uma hora; o Paulo Fonte dá sessões nas Termas do Estoril todos os dias da semana, ambos por marcação. JAE.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

O dia do adeus a Joaquim Botas Castanho

Joaquim Botas Castanho soube sair a tempo da vida política; por isso deixou uma imagem de estadista que sempre lhe assentou bem, mesmo quando era apenas vereador e mais tarde vice-presidente da Câmara de Santarém.


Morreu Joaquim Botas Castanho. Soube da sua morte por uma mensagem da Joana enquanto descia a escadaria que dá acesso à praia de Cancela Velha um dos lugares mais bonitos do mundo para viver perto do mar. A minha primeira lembrança foi recordar Joaquim Botas Castanho a pescar, coisa que nunca fiz, mas ainda quero fazer quando me faltarem as pernas para descer escadas ou vencer distâncias.

Não preciso de consultar enciclopédias nem livros de frases feitas para elogiar a pessoa amiga e o político que foi Joaquim Botas Castanho. Há pessoas que nos marcam pelo exemplo, mesmo que nunca tenhamos sido amigos ou partilhado mais do que uma boa relação pessoal e respeito mútuo. Foi o caso. É impossível não referir que Joaquim Botas Castanho era um homem do PS, partido que em Santarém foi casota dos maiores sacanas que já conheci. Mas onde é que não há mosquitos se houver estábulos onde se faz criação de coelhos?

Lá para onde foi, e se me estiver a ler, Joaquim Botas Castanho não vai achar muita graça a esta crónica. No tempo em que nos conhecemos os relógios já estavam acertados pelo horário dos tempos de hoje. Uma boa parte da nossa vida política está nos antípodas daquilo que sonhamos. Quando lembrou, em entrevista a O MIRANTE, em Março de 2008, o assalto ao poder no PS escalabitano, que levou à queda do então presidente da câmara Miguel Noras e à ascensão de Rui Barreiro, já todos percebíamos que a reforma do Estado também ia ficar para as calendas gregas, e adivinhávamos o clima de greves absurdas que estão aí para confirmar o estado da Nação: greves dos funcionários da Justiça, dos guarda-rios, ASAE, polícias, guardas, professores, funcionários dos consulados, e mais do que desgraça as opções políticas na escolha de velhos do Restelo para dirigirem as nossas instituições. Joaquim Botas Castanho soube sair a tempo da vida política; por isso deixou uma imagem de estadista que sempre lhe assentou bem, mesmo quando era apenas vereador e mais tarde vice-presidente da Câmara de Santarém.

A última vez que nos vimos foi, muito recentemente, na Casa do Brasil onde lançámos dois livros. Esquecendo o tempo em que cimentámos a nossa relação pessoal, recordo com carinho a sua ajuda para organizarmos na sede do jornal um debate a pretexto da comemoração dos 500 anos do Brasil e do lançamento do livro "Carta de Pero Vaz de Caminha", numa edição da Guerra & Paz, que O MIRANTE patrocinou e que foi pretexto para uma conversa na nossa redacção com o jornalista do Expresso Henrique Monteiro, o embaixador Francisco Seixas da Costa e Manuel S. Fonseca, o editor.

Entre o tempo em que escrevi esta crónica e a data da sua publicação, o meu mergulho na praia e na paisagem marítima de Cancela Velha, e a morte de Joaquim Botas Castanho, passaram seis dias. Não alterei uma linha no texto que escrevi debaixo de um chapéu de sol com inveja de quem tem cu para ficar o dia inteiro na praia. Apaguei alguns lugares-comuns que sempre aparecem nos textos quando se escreve poesia com sentimento, mas só me lembro disso porque o compromisso com a escrita é não ser leviano nas críticas nem demasiado louvaminheiro nos elogios.

Volto à memória de Joaquim Botas Castanho quando falávamos do prazer da arte da pesca que obriga a um estilo de vida que não está ao alcance de toda a gente.

No regresso da praia encontrei o “Esmeralda” e o “Já estou aqui”, amarrados perto da margem. O sol ainda ia alto e eu tinha mais que fazer que ficar na praia preso ao adeus a Joaquim Botas Castanho. Levava um livro que não li, o cachimbo que não me apeteceu acender, e dois mergulhos na água meio choca quase que me adormeceram os miolos. Para não dizer mal da vida nem fazer a vontade ao sentimento de tristeza, que depois também vi espelhado nos barcos parados na margem, fui jantar a Vilamoura. O resto é o que quase todos já sabem, principalmente os que já viveram a noite nas Las Vegas portuguesa. JAE.